Rafael Tonon

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Reportagem

De quem é o falafel? Guerra entre Palestina e Israel também passa pela mesa

Nascida e criada em Jerusalém por pais palestinos, Reem Kassis sempre lembrava das receitas que comia na infância quando, vivendo na Filadélfia para estudar, sentia saudades de casa.

Ela lembra que ao fazer as malas para se mudar para os EUA, a mãe lhe deu uma sacola com alguns ingredientes essenciais: freekeh (o trigo colhido ainda verde, defumado servido como arroz que é base da cozinha palestina), sumagre, za'atar e muitos outros.

Quando o estoque acabou, precisou buscar a comida familiar fora de casa: para sua surpresa, todos os pratos que ela lembrava com afeto estavam disponíveis nos menus dos restaurantes israelenses, que representam uma grande cultura na cidade.

Homus, tabule e o freekeh, com gosto exatamente igual ao da sua mãe. Mas apesar da satisfação dos sabores, parecia frustrante que as comidas que ela sempre comeu fossem vendidas como "israelenses".

Para Kassis, o termo "cozinha israelita" era difícil de engolir. Por isso ela teve a motivação para escrever livros, como 'The Palestinian Table' ('A Mesa Palestina', publicado em 2017), em que tenta explicar e valorizar as origens da cozinha de seu povo.

Não porque se opusesse ao fato de a fusão culinária ter feito com que os israelenses acabassem por comer os mesmos pratos, às vezes feitos com algumas variações e adaptações — algo que sempre acontecesse na culinária.

O freekeh é um trigo colhido verde e que, defumado, é a base da comida palestina
O freekeh é um trigo colhido verde e que, defumado, é a base da comida palestina Imagem: iStock

Mas sobretudo por sentir uma tentativa de anulação da origem palestina e árabe do que passou a fazer parte de sua rica gastronomia, principalmente desde que os imigrantes judeus se estabeleceram ali.

Vindos da Europa de Leste, eles transformaram seus hábitos alimentares de comidas substanciosas por uma alimentação mais balanceada da dieta Mediterrânea, rica em ingredientes locais, como frutas, vegetais e produtos lácteos.

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Apropriação ou apagamento?

A fusão, no entanto, é resultado de todas as culinárias, e Kassis sabe disso. Mas nunca concordou com uma possível ideia de apropriação cultural — e consequente apagamento — por alguns restaurantes israelenses.

"Apresentar pratos de origem palestina como 'israelense' não só nega a contribuição palestina para a cozinha israelita, mas também apaga a nossa própria história e existência", ela defende.

Babaganoush
Babaganoush Imagem: iStock

Muitos são os historiadores da alimentação, alguns deles israelenses — como Ronald Ranta, Yonatan Mendel e Dafna Hirsch — que defendem que pratos corriqueiros da alimentação que se come hoje em Israel (como homus, falafel, masbaha e babaganoush) foram aprendidos com a população palestina.

As teses provam que alimentos-chave da cozinha israelita, como o próprio falafel, por exemplo, nem sequer faziam parte do repertório culinário da maioria dos judeus antes da sua imigração na década de 1950.

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Era um prato geralmente consumido no Líbano, na Jordânia, na Síria e na Palestina, e não no Norte de África, no Iémen e no Iraque, de onde a maioria dos judeus Mizrahi emigraram.

Em muitas culturas, estes pratos são chamados "árabes" justamente por terem tido uma mesma origem, e não podem ser considerados apenas libaneses, sírios, jordanianos ou palestinos.

Segundo Kassis, nenhum desses povos tratou de reivindicar a criação deles. "Mas os debates são decididamente mais acesos quando envolvem Israel, pois os alimentos tornam-se um símbolo para o conflito político e a ocupação de décadas", ela diz.

Tabule
Tabule Imagem: iStock

Símbolo nacionalista

Em um esforço para criar um Estado para o povo judeu, a comida também foi um item utilizado para alcançar um sentimento de nacionalismo israelita.

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Claro, até porque o que se come diz muito dos valores e dos alicerces culturais que definem um povo, uma sociedade. Mas, no caso dos palestinos e israelenses, esses alicerces alimentares são, não raro, muito parecidos.

Até porque os hábitos culinários são construídos com base em séculos e quase nunca respeitam as fronteiras que os homens acabam por impor por interesses políticos, culturais ou religiosos.

A cultura alimentar israelita é recente, ainda que se orgulhe de ser um subproduto de muitas influências e forças imigrantes de um povo que historicamente sempre esteve a escapar.

Falafel
Falafel Imagem: Salted/UOL

Não é raro ver referências a outras culturas em receitas consumidas (e adoradas) pelos israelenses: o molho "schug iemenita", o famoso sanduíche "sabich iraquiano" ou a "salada tunisiana" aparecem com frequência em menus.

"Mas a ausência da palavra "palestina" nos menus e livros é uma omissão flagrante", escreve a autora. Usar "palestino" como adjetivo (ainda que em uma receita) é considerado por alguns radicais como uma ameaça à sua existência — um peso que a comida não reivindica.

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Por isso, a "salada palestina" (ou salata falahiyeh), segundo o escritor gastronômico israelense Gil Hovav, passou a ser chamada por muitos de "salada israelense", ainda que só tenha chegado a cozinhas israelenses pelos refeitórios do kibutz na década de 1950 — enquanto o pepino já era usado em saladas no mundo árabe desde a Idade Média.

Curiosamente, no entanto, são muitos os restaurantes israelenses que fazem referência à salada como "salat aravi", ou salada árabe, reconhecendo sua origem inicial.

Tempero árabe za'atar
Tempero árabe za'atar Imagem: iStock

A comida além da geografia

Para expandir o apelo internacional da identidade da cozinha palestina, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) tem realizado algumas incursões pelos territórios de Gaza e da Cisjordânia com chefs para mostrar produtos que moldaram essa culinária.

Uma forma, segundo o órgão, de usar a comida para além da geografia como um esforço vital para um sentimento de enraizamento e identidade para um povo cuja identidade nacional não conta com um Estado independente.

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A culinária, nesse sentido, tem um poder transformador de unidade e pertencimento, a partir do qual as receitas ajudam a contar a sua história e determinar seu papel no mundo — os armênios, cuja diáspora é a mais significativa do mundo, sabem bem disso.

O reconhecido chef Yotam Ottolenghi, nascido em Jerusalém e baseado em Londres, reconhece o papel dos conflitos para a identidade de receitas, apesar de ter tentado levar suas receitas muito além deles.

Há alguns anos ele escreveu, em parceria com o autor palestino Sami Tamimi (em um esforço para unir as culturas), um dos mais premiados livros de cozinha sobre aquele pedaço de terra que compõe o Oriente Médio.

Homus
Homus Imagem: iStock

Batizado justamente de Jerusalém, o livro (publicado no Brasil pela Companhia das Letras) é uma ode à diversidade culinária da cidade — e das culturas que ela representa, é claro.

"O homus, por exemplo, é definitivamente um prato árabe, não acho que alguém poderia negar isso, mas obviamente também se tornou o prato nacional de Israel", ele diz.

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Por isso, diz o chef, deveria ser de todos, como a pizza é tão nova-iorquina ou paulistana quanto napolitana, talvez, se olharmos pelo lado do consumo e da adoção.

É, como outras receitas, na mesma medida parte da vida à mesa dos palestinos quanto dos israelenses. Dizer que pertence a apenas um dos povos seria um grande erro. E ignorar que a comida pode ser mais um fator de união do que de conflito entre eles, também.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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