Rafael Tonon

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Opinião

De renegados às capas de revista: prêmios converteram chefs em celebridades

Trabalhamos de pé até altas horas da madrugada e nossas mãos vivem queimadas. Não tem nada de célebre nisso. Quem procura emprego na cozinha quer escapar de alguma coisa, isso é o que nos une

A frase acima é do saudoso Anthony Bourdain. O chef que virou apresentador de TV e um dos mais importantes comunicadores da gastronomia moderna — ele mesmo tonado uma celebridade seguida por todos até seu suicídio, em 2018 — proclamou: "Quem entra nesse negócio para virar celebridade é um idiota".

 O chef, escritor e apresentador Anthony Bourdain (1956-2018)
O chef, escritor e apresentador Anthony Bourdain (1956-2018) Imagem: Divulgação CNN

Talvez muitos não tivessem mesmo a intenção de se tornarem pessoas famosas a quem se para nas ruas para tirar fotos ou pedir autógrafos: mas a verdade é que os cozinheiros, de repente, gostaram desse papel. Sentiram-se cômodos com ele.

Sem nenhum glamour

Até porque foi um caminho, digamos, inesperado. Há cerca de 40 anos, os chefs não eram considerados nada glamourosos: eram apenas profissionais das panelas, escondidos atrás das portas que os mantinha confinados em suas cozinhas.

Não eram artistas nem visionários. Não eram perguntados sobre política nem chamados a tentar pensar estratégias para sanar conflitos e guerras.

Mal davam entrevistas, quiçá poderiam almejar ter um livro publicado com sua assinatura e receitas ou uma foto na capa de uma revista.

Antes das décadas de 1970 e 1980, os chefs eram "burros de carga anônimos", como descreve o escritor Andrew Friedman em seu livro "Chefs, Drugs and Rock & Roll", publicado em 2018.

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Capa do livro "Chefs, Drugs and Rock & Roll", publicado em 2018
Capa do livro "Chefs, Drugs and Rock & Roll", publicado em 2018 Imagem: Reprodução

Eram desconhecidos e até desinteressantes do ponto de vista do status social. A cozinha era apenas um caminho para um emprego, não uma profissão.

Nos restaurantes, estavam "os desajustados, os marginalizados", aqueles que não sabiam o que queriam da vida, como escreve o próprio Bourdain em seu clássico "Cozinha Confidencial" (o livro que, curiosamente, o fez famoso no mundo todo).

Chefs no centro

Mas as coisas mudaram: nas últimas décadas, o chef passou a ser considerado a estrela no centro da cozinha. O homem de dolmã branca virou capa de revista, passou até (quem diria?) estrelar campanhas publicitárias.

O chef virou um criador: "ele é um homem, provavelmente. Um gênio, definitivamente. Digamos que esse gênio seja volátil, meticuloso, impenetrável, charmoso e pronto para a câmera", como escreveu a crítica gastronômica Tejal Rao em uma reportagem para o The New York Times.

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"Ele não gerencia apenas a equipe de um ótimo restaurante. Ele é o ótimo restaurante!", ela continua, mostrando como a figura construída em torno da profissão suplantou qualquer outra função.

As pessoas não vão ao Maní, elas vão ao "restaurante da Helena Rizzo", a chef que se tornou celebridade televisiva como jurada do MasterChef, no horário nobre da Band.

A chef Helena Rizzo, jurada do MasterChef
A chef Helena Rizzo, jurada do MasterChef Imagem: Instagram/Reprodução

Novos holofotes

Faculdades de gastronomia surgiram de carona nessa onda, jovens passam a dizer aos pais, sem medo e com orgulho, que querem ser "chefs" — tal como querem ser gamers ou jogadores de futebol.

Os chefs estão conectados com o que dá prazer às pessoas, e isso atrai. Há algo muito cool em quem sabe cozinhar bem, algo que uma certa dose de atitude e muitas tatuagens nos braços só ajudam a escalar.

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Os holofotes viraram-se para as cozinhas e obrigaram muitos cozinheiros a saírem delas: hoje os chefs viajam, dão palestras, fazem turnês de seus livros. Há até chefs nos campos de guerra a fazer streamings de refeições que servem para vítimas de conflitos.

O chef Henrique Fogaça: atitude também conta pontos na nova roupagem dos chefs
O chef Henrique Fogaça: atitude também conta pontos na nova roupagem dos chefs Imagem: Fernando Moraes/UOL

Prêmios e mais prêmios

Mas sobretudo os chefs recebem prêmios — muitos deles. A quantidade de listas e rankings, premiações e reconhecimentos que surgiram na gastronomia nos últimos anos são muito representativos da celebritização da profissão.

Do guia Michelin (que agora volta ao Brasil e anunciou edição também na Argentina, em franca expansão) aos 50 Best, a mais influente e polêmica lista do segmento que também não para de crescer, a indústria soube ganhar tração justamente a partir do ego dos chefs.

Como em outros segmentos, reconhecer talentos e gerar uma certa competitividade já se mostrou ser uma estratégia acertada de propaganda: estão aí Oscars, Grammys, Nobels e outros prêmios importantes para comprovar.

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Todo mundo quer ser reconhecido, estar no topo em sua carreira, gozar da admiração de seus pares — é algo natural e demasiado humano.

Novos gênios criativos

Mas na gastronomia, as premiações souberam atingir aquele que é o calcanhar de Aquiles do segmento para poder crescer — e, claro, lucrar.

Reconhecer como gênios criativos profissionais que antes não passavam de renegados em cozinhas gordurosas e barulhentas foi o que ajudou a impulsionar a própria imagem dos chefs em uma retroalimentação infinita.

E um indicativo que ela não deve acabar tão cedo. Nesta semana, o chef espanhol Dabiz Muñoz ganhou pela terceira vez o prêmio de melhor cozinheiro do mundo na lista do The Best Chef, prêmio que saiu das redes sociais para se tornar uma das cerimônias mais concorridas do momento.

Dabiz Muñoz recebeu pelo terceiro ano o título de melhor chef do mundo
Dabiz Muñoz recebeu pelo terceiro ano o título de melhor chef do mundo Imagem: Divulgação
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Foco na imagem

A história de como o talentoso e arguto casal Joanna ?lusarczy e Cristian Gadau (os criadores do The Best Chef) deu esse passo é muito representativa desse movimento.

Ao focar na imagem dos chefs, e não dos restaurantes, como as outras premiações vinham fazendo, eles criaram potentes bombar de ar para inflar os egos que ajudaram a catapultar a imagem e a repercussão do seu próprio prêmio.

Nas redes sociais, os chefs concorrentes a um dos cobiçados lugares no ranking dos 100 melhores do mundo compartilham o reconhecimento (muitas vezes, só ter sido nomeado já vale) com seus milhares de seguidores, dando legibilidade à premiação.

Dabiz Muñoz na entrega do The Best Chef Awards, realizado esta semana
Dabiz Muñoz na entrega do The Best Chef Awards, realizado esta semana Imagem: PIOTR WYSZYNSKI

O efeito é de viralização: os cozinheiros se tornam os propagadores motivados por sua própria busca por reconhecimento e alguma fama. Em tempos em que nos convertemos todos um pouco em influencers digitais, isso ganha ainda uma nova conotação, é claro.

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Maior projeção

Os prêmios gastronômicos têm sabido se aproveitar disso: assim, ganham maior projeção, atraem mais patrocínios, conquistam mais espaço em meios de mídia, que, cada vez mais, se baseiam em repercutir o que ocorre nas redes sociais.

É bom para eles, é bom para os chefs. Todo mundo ganha mais projeção, mais reconhecimento, mais dinheiro. Perde, talvez, a visão mais holística de que um restaurante é, sempre, a soma de muitas partes.

Para a comida chegar à mesa de um cliente, é preciso literalmente do trabalho de muitos, do agricultor ao pescador e até o garçom.

O chef ter, finalmente, sobre sua cabeça um holofote a iluminar seu esforço e dedicação não é algo mau; é até justo para uma função por tanto tempo menosprezada.

Agora, o mínimo que se espera é que eles saibam difundir essa luz , trazendo para diante do feixe os outros profissionais que o ajudaram a chegar ali. Toda fama tem consequências: que eles saibam aproveitar as melhores.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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