Pior receita, melhor chef: por que amamos odiar os rankings gastronômicos
Em pouco menos de uma semana, saberemos, enfim, qual é a melhor culinária do mundo. Sai no dia 16 de dezembro a lista "definitiva" lançada pelo controverso site TasteAtlas sobre o país com a melhor cozinha do globo.
Até agora, só se sabe quem são os finalistas: China, França, Grécia, Indonésia, Itália, Japão, México, Peru, Portugal e Espanha.
"Como assim não tem o Brasil?", pode se perguntar o leitor. Pois também não há Tailândia, não há Turquia, nem mesmo Marrocos entre os 10 primeiros.
A única coisa que há — e haverá ainda mais quando o ranking for revelado, claro! — é polêmica. E é justamente para isso que o TasteAtlas, que se autodenomina um atlas mundial de sabores, se propõe.
No ano passado, quando a lista foi anunciada, uma enorme comoção tomou a Malásia: as redes sociais foram invadidas por posts indignados com a colocação do país — um modesto 46º lugar entre 50 nações.
A lista gerou falas de políticos, especialistas e celebridades malaias levantando questões desde a metodologia do ranking — que teve os EUA em 13º lugar — até defesas de que poderia ser manipulado por avaliações falsas ou tendenciosas.
O TasteAtlas, claro, se beneficiou de tamanha audiência. E veio aos meios de imprensa filipinos explicar que a classificação dos países é baseada na pontuação média dos usuários em 30 dos melhores pratos, bebidas e produtos alimentícios de cada um.
Também esclareceu que usa inteligência artificial para saber se os votantes são mesmo reais. "Os usuários que atribuem classificações excelentes a um país em um local e classificações ruins a outros países são eliminados", explicou o portal criado pelo pelo jornalista e empresário croata Matija Babi?.
Trata-se de uma pesquisa de popularidade: quem está por trás dos votos são pessoas comuns, não especialistas. Por isso, poderia-se dizer que o TasteAtlas tem o mesmo peso em termos de validação que uma enquete de Instagram.
Mas isso pouco importa: o que está em jogo aqui são os cliques e a visualização, que se alimenta dos meios de comunicação que republicam tudo respaldando as opiniões e, claro, as redes sociais, que ficam dominadas com todos os rankings que o site divulga.
No Brasil, o TasteAtlas viralizou ainda mais na semana passada com a lista das 36 receitas "pior avaliadas", que tinha de coxão mole (?) na primeira posição a cuscuz paulista, arroz com pequi, tareco e maria-mole.
Os brasileiros se organizaram para um embate contra a publicação: de sociólogos e pesquisadores da gastronomia brasileira, incluindo até a Ana Maria Braga, que se decretou "chateada" com os resultados do site (que erroneamente disse ser americano).
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Quero receberTodo mundo ama odiar listas e rankings. E é por isso mesmo que elas estão por aí: para causar controvérsias, para se tornarem "assunto" a partir das mais diversas opiniões.
Na gastronomia, um universo inteiro constituído por subjetividades e egos, elas encontraram talvez o seu principal filão — claro, há listas sobre cinema, sobre música e outras áreas culturais.
Mas em nenhum outro segmento existem prêmios que reconheçam publicamente os melhores exclusivamente a partir de listas e rankings, e não de categorias. Os 50 melhores restaurantes do mundo, os 100 chefs mais respeitados em todo o planeta.
Ninguém acredita — ou deveria acreditar — que um restaurante é realmente o melhor do mundo porque recebeu votos de um milésimo de pessoas.
Como ninguém deveria levar pro pessoal o fato de que uma horda de internautas (cerca de 5.000) decidiu que o cuscuz paulista é a segunda pior coisa que temos na nossa gastronomia.
Listas assim não passam de um retrato de um momento em alguns casos; ou de uma piada de mal gosto em outros. A repercussão que se faz delas é que as ajuda a se propagarem e ganharem cada vez mais destaque impulsionadas por polêmicas e simplificações.
Também por isso não se pode assumir que elas sejam puramente inocentes; não são. Por trás de um ranking há "replicações de preconceitos e estereótipos", como bem lembrou a bartender e pesquisadora Neli Pereira em um Reels em que abordou o fato do mesmo ranking ter elencado a cachaça, a catuaba e a cajuína como as piores bebidas brasileiras.
Na maior parte delas, as listas de gastronomia ainda carregam visões pré-estabelecidas, eurocêntricas e colonialistas que representam um status quo da sociedade em que vivemos e que estão, na maioria das vezes, longe de mudar.
Não à toa, os países europeus ocuparam sete das 10 primeiras posições do ranking de "melhores culinárias" do TasteAtlas no ano passado — e a minha aposta é que pouco vai mudar na lista deste ano.
Na edição latino-americana dos 50 Best Restaurants, recém-anunciada no Rio de Janeiro, um restaurante peruano ganhou como melhor do continente pela nona vez — de 10!
Quanto disso é representativo de que o Peru tenha de fato excelentes restaurantes (e os tem!) ou de uma ideia sustentada de que precisamos acreditar (e manter!) que o país tem mesmo os melhores restaurantes?
Se uma premiação que elege os melhores de 'qualquer coisa' da América Latina não cita nem um preto ou preta e isso não te incomoda nenhum pouco, você não entendeu nada" Chef Benê Souza, sobre os 50 Best, em seu Instagram
As listas se perpetuam com lugares-comuns, clichês e opiniões "consensuais" que representam as maiorias. Elas são os mensageiros, não são exatamente a mensagem.
O que está errado, talvez, seja o peso que as pessoas deem a elas por um desejo de uma terceirização de suas próprias opiniões.
Porque o "melhor" e o "pior" são construções vazias numa sociedade que carrega uma obsessão abstrata e volátil, vazia e reducionista das coisas.
Que nos tira justamente a beleza do caminho, do descobrimento (de provar e gostar — ou não). Como se fossemos capazes de termos todos a mesma convicção num mundo tão polarizado entre pontos de vista.
Tudo bem alguém não gostar de cuscuz, ou achar que cajuína é ruim pra caramba. Vivemos em um mundo livre, em que cada um pode — e deve — achar o que quiser sobre qualquer coisa.
O que é diferente de compartilhamentos (pelas redes ou em conversas privadas) pasteurizados sem pensamento crítico, que quase sempre condicionam nossa própria opinião sobre algo que nem sempre concordamos.
Nestes casos, estas listas representam apenas isso: o melhor do pior daquilo que podemos ser.
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