Sob a água do RS à Europa, vinhos e alimentos podem estar com dias contados
Entre cenas de cavalos em telhados, de barcos a navegarem por onde passavam carros e de centenas pessoas completamente desoladas, a maior enchente da história do Rio Grande do Sul também levou com ela parte de outra grande riqueza do estado: seus vinhos.
Em um vídeo publicado no Instagram, a água leva grande parte de um vinhedo com sua força, arrancando da terra, com raiz e tudo, dezenas de parreiras de Merlot e Tannat que estavam plantadas há mais de uma década na propriedade de Heleno Facchin, sócio da Cooperativa Nova Aliança.
Em outras propriedades, as enchentes levaram equipamentos, máquinas e garrafas, muitas garrafas, acabando com anos de produção vinícola, destruindo adegas inteiras, soterradas em lama.
Ainda não há dados sobre as perdas, mas produtores já falam em prejuízos milionários. O Rio Grande do Sul produz quase 90% do vinho nacional e a recente tragédia das chuvas pode colocar produções de anos e anos em risco.
Do nosso Sul à Europa e aos EUA
É impossível fechar os olhos para o que passa no planeta, para além de um dos mais importantes estados do nosso país. Climas extremos tem sido registrados com cada vez mais frequência — e maior intensidade.
Para ficarmos nas uvas, inundações no ano passado deixaram mais de um terço das uvas da Califórnia apodrecendo nas videiras. Na Europa, o cenário se repete: chuvas e mais chuvas. Depois também geadas, outras horas incêndios — também registrados na Califórnia.
Números do setor dão conta de que produzir vinho vai ser muito mais desafiador e caro nos próximos anos — ainda nesta década! — tendo em conta regiões que podem simplesmente desaparecer.
Até 70% das regiões produtoras de vinho poderão tornar-se impróprias para o cultivo da uva se o aquecimento global exceder os 2°C, de acordo com um novo estudo que analisou 200 artigos sobre as alterações climáticas na produção de uvas.
Os cientistas alertam que regiões da Califórnia, Espanha, Itália, França e Grécia não poderão mais produzir vinhos no futuro se as temperaturas aumentarem como o indicado pelas projeções.
Especificamente, 29% [das regiões] poderão enfrentar condições climáticas demasiado extremas, impedindo a produção de vinho, enquanto o futuro dos restantes 41% dependerá da viabilidade de medidas de adaptação eficazes.
Um futuro inseguro
Mas o colapso climático — é preciso chamar as coisas pelo nome! — passa muito além das nossas taças, infelizmente, e tem atingido os alimentos-base da nossa alimentação global.
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Quero receberTem impacto com trigo, soja (que alimenta nossos animais), arroz — como é também o caso do RS, o maior produtor (70% do total) do alimento mais consumido pelos brasileiros diariamente, que tem feito o governo ponderar planos de importação de contingência do grão.
O cenário que se desenha no futuro é desolador: cientistas e ambientalistas preveem uma grande insegurança alimentar global causada pelo clima. Os sistemas agrícolas não conseguem ser resilientes a eventos meteorológicos tão extremos — pudera!
A alta incidência de luz solar em algumas regiões cada vez mais quentes está queimando as plantações de frutas ainda nos pés. Com o calor e aumento da umidade por conta das chuvas em outras partes do mundo, pragas com as quais os produtores nunca se preocuparam estão tomando os campos.
Por isso, é impossível tratar da pegada ambiental sem falar da alimentação, já que a cadeia de alimentos é uma das que mais causa impacto nas condições climáticas que temos vivido hoje.
O nosso sistema agroalimentar é um dos principais fatores que contribuem para o colapso climático que estamos vivendo. Ele é responsável por quase um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa e tem causado um acelerado desmatamento, além da degradação do solo e perda massiva de biodiversidade.
A frequência e a intensidade dos eventos extremos (cada vez mais comuns) gera uma incerteza sobre a disponibilidade futura de recursos básicos como a água em muitas regiões. Sem água, é impossível produzir alimentos.
Agricultura 'favorecida' acabou prejudicada
Curioso é pensar que muitas leis criadas para proteger o meio ambiente estão sendo afrouxadas em nome da produção agrícola. No Rio Grande do Sul, o governo de Eduardo Leite mudou quase 500 normas do Código Ambiental do estado.
Mas os impactos climáticos afetam diretamente — e de forma profunda — a própria agricultura, que é o setor mais prejudicado quando as temperaturas aumentam, causando secas, chuvas torrenciais e geadas fora de época.
Os agricultores estão na linha de frente das mudanças climáticas. Sem um plano de contingência que os possa ajudar quando o pior da tragédia passar, podemos ter o fim de lavouras inteiras e a maior perda da produção vinícola do país.
Na Inglaterra, no ano passado, as chuvas recordes deixaram campos agrícolas submersos e a saúde do gado em risco, aumentando a pressão sobre os produtores de alimentos.
As inundações e as condições meteorológicas extremas associadas às alterações climáticas prejudicaram de forma profunda a produção alimentar do Reino Unido.
O governo se viu obrigado a lançar um Fundo de Recuperação Agrícola, oferecendo subsídios (entre 500 e 25.000 libras) a agricultores em algumas partes do país que sofreram danos por inundações nas suas terras.
Não foi o suficiente, mas muitos agricultores vieram à público dizer que a ajuda foi providencial para reparar danos massivos às suas propriedades — ainda que o governo não tenha aprovado o apoio à saúde mental dos produtores afetados pelo que a imprensa local chamou de "eventos de choque".
No Brasil, ainda nenhum anúncio oficial foi feito sobre a situação dos produtores. O prefeito de Bento Gonçalves, Diogo Segabinazzi, fez um apelo à população brasileira nas redes sociais para que compre produtos de origem gaúcha, ajudando os agricultores.
É uma forma de lhes garantir algum fluxo de caixa até que consigam mensurar o rombo causado pelos estragos. Como medida mais emergencial, também é uma forma de ajuda.
Seguimos em direção a um futuro de maior insegurança alimentar e colapso dos sistemas alimentares que é iminente. A água já está batendo na porta. Daquilo a pouco, vai fazer roncar nossos estômagos.
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