Rafael Tonon

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Opinião

Comer o que jogam no lixo: será esta a melhor arma contra o desperdício?

Se há uma matemática que não está certa neste mundo é a do desperdício de alimentos: por qualquer equação que se veja, o resultado é sempre desesperador.

Dados da ONU indicam que, juntos, os lares em todos os continentes desperdiçaram o equivalente a mais de um bilhão de refeições todos os dias em 2023.
Isso ocorre ao mesmo tempo em que 783 milhões de pessoas passavam fome e um terço da população mundial sofria de insegurança alimentar.

Se somarmos os dados relativos às perdas e desperdícios em todo o mundo, teríamos que cerca de 1,6 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas ou propositalmente desperdiçadas.

Os números equivalem a cerca de 30% de toda a produção alimentar global: 13,2% em perdas e mais 17% em puro desperdício.

A maior concentração do problema, entretanto, não está nas casas das pessoas, mas no varejo. Dos supermercados aos restaurantes, aí está o maior "ralo" para as perdas.

Estimativas calculam que 17,5% dos alimentos preparados na cozinha de um restaurante são jogados diretamente no lixo.

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Imagem: Getty Images

Destes, 2,2% são descartados durante o preparo (resíduos de cozinha — aparas e sobras normais). As sobras de distribuição/perdas durante o serviço são de 11,3% e 3,9% são representados pelo que os clientes descartaram (sobras nos pratos).

No Brasil, a Anvisa impõe regras rígidas para a doação de comida preparada por parte dos restaurantes. Não é que eles não possam doá-la, mas as imposições são tão duras que muitos preferem descartá-la.

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Por exemplo, a comida tem que ser preparada e armazenada numa cozinha profissional para só depois ser doada — em até um dia. E o armazenamento deve ser em temperaturas abaixo de -6 °C ou acima de 60 °C.

Porém, quem responde por qualquer problema que essa comida possa causar na saúde de alguém é o restaurante, que pode enfrentar processos rigorosos em caso de intoxicações. Por isso, a maioria prefere jogar a comida fora.

Mercado das sobras

Para contornar esse problema, algumas startups começaram a olhar com mais atenção para a comida que seria jogada no lixo nos restaurantes — e buscar uma forma de reaproveitá-la.

Nos EUA, a Too Good to Go foi criada como um aplicativo que faz parceria com restaurantes, padarias e cafeterias locais para vender as sobras do final do dia.

O usuário recebe um monte de comida que iria parar no lixo por uma fração do preço — lá, os valores variam entre US$ 5 e US$ 10 (de R$ 25 a R$ 50), dependendo das quantidades e do que oferecem.

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O que é bom e ruim é que nunca se sabe o que virá na "caixa-surpresa": pode ser desde fatias de pão e focaccias que não foram para a mesa até sobremesas (como bolos e tortas) que sobraram mais da metade — tudo sem ter sido consumido, é claro.

A startup virou uma febre, ganhando reportagens em meios como o The New York Times e a revista Wired, mostrando como é possível, através de um app, resolver um problema que até então os governos estão longe de solucionar.

No aplicativo, há opções que vão de padarias a docerias até pequenas fábricas de iogurte, tortas, queijos e todos os tipos de alimentos. Há algumas que, mais do que produtos prontos, conseguem oferecer ingredientes em grandes quantidades, como soro de leite, massa de pizza, entre outros.

Em redes sociais e fóruns de discussão na internet, usuários ensinam como tirar melhor proveito das grandes quantidades de alimentos vendidos "a preço de banana" pelos estabelecimentos através da Too Good to Go.

As dicas vão desde congelar — e o que é possível ou não manter no congelador, com relatos práticos do que funcionou ou não — a aproveitar os kits para fazer encontros com amigos, levar no almoço da família ou no aniversário do mês da firma.

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Imagem: Getty Images
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Um app não basta

Mas em muitos deles, mais do que salvar o mundo dos desperdícios que nos assolam, os depoimentos mostraram que, na verdade, a plataforma parecia "too good to be true" (muito boa para ser verdade).

Muitas vezes, os doces vinham amassados, o pão com princípio de mofo e queijos com um cheiro levemente mais forte que o habitual.

Outros depoimentos tratavam de como o ato de comprar essas sobras se tornava um problema para o usuário do aplicativo, que tem que comer ou buscar distribuir tudo a conhecidos para que a comida não acabe no lixo — gerando um peso moral enorme.

Ou seja, mais que resolver o problema, a startup, a partir de uma ideia tão promissora e genial, apenas repassa a responsabilidade dos restaurantes para seus clientes.

Claro que, pensando no problema que é a distribuição de alimentos no mundo, a Too Good to Go é um paliativo positivo. O mesmo acontece com chefs e restaurantes que também têm levantado a questão.

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De cozinhas que aproveitam sobras dos supermercados a restaurantes que calculam a sua pegada de carbono pela quantidade de alimentos que deixaram de jogar fora.

São boas iniciativas, claro, mas o problema do desperdício alimentar no planeta é talvez o mais urgente quando pensamos no tanto de comida que produzimos e no quanto ainda pessoas passam fome — ou ingerem menos nutrientes do que deveriam para serem consideradas saudáveis.

Um aplicativo, por mais bem intencionado que seja, não dá conta de sanar uma urgência tão grande quanto a da má distribuição alimentar no planeta. No final, são mais como um Band-Aid colorido para tentar conter um grande sangramento.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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