Rafael Tonon

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Opinião

Menos heróis, mais realidade: séries focam em lado sem glamour da comida

Não preciso estar inspirada. Não preciso ficar apaixonada. Eu não preciso fazer mágica. Não preciso salvar o mundo, sabe? Eu só quero alimentar meu filho.

A frase dita por Tina (Liza Colón-Zayas) e Mike (Jon Bernthal) no sexto episódio da terceira e nova temporada de O Urso (The Bear), que estreia no Brasil nesta quarta (17) pelo Disney+, é uma dura confissão da cozinheira sobre o que significa seu trabalho no mundo dos restaurantes.

Mas também representa a nova direção em que a própria gastronomia passou a ser representada nas telas, principalmente da televisão, com uma nova leva de séries menos interessadas em mostrar o lado glamoroso das cozinhas e mais focadas na realidade que há para além delas.

Abaixo a perfeição

É uma nova perspectiva que faltava aos produtos culturais que pululam nos streaming em todas as direções. Um passo além da estética propalada pelos pratos perfeitos de Chef's Table e seus personagens que procuravam emular a "narrativa do herói".

O chef que teve uma epifania e encontrou seu lugar na cozinha; o chef com vívidas memórias de infância que decidiu romper os modelos da cozinha do seu país e ser transgressor; o chef que procura sua verdade através do que serve. Nem todo chef, mas sempre um chef.

O chef Alex Atala em cena na série Chef's Table (Netflix)
O chef Alex Atala em cena na série Chef's Table (Netflix) Imagem: Divulgação

Tudo isso permeado por imagens de pratos em closes sexuais de molhos viscosos sobre vegetais perfeitos, mãos hábeis que formam gotas perfeitas sobre pratos brancos imaculados e música clássica no maior volume para tornar tudo ainda mais épico.

Foi-se o tempo em que a cozinha tinha que ser retratada como se fosse uma prática demasiadamente plástica para engajar. Fato é que depois do surgimento de Chef's Table, em 2015, o próprio universo da gastronomia sofreu muitos reveses.

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Gente real

Com o #MeToo e as denúncias sobre os ambientes tóxicos que envolvem as cozinhas profissionais de diferentes partes do mundo, cozinheiros famosos deixaram de sustentar a aura de bons moços que antes estampavam as capas das revistas.

As cozinhas, mais do que espaços abertos e com equipamentos mais caros que um carro de luxo, ganharam também tetos de vidro: passou a ser difícil engolir pratos irrepreensíveis sem ter um sabor amargo na boca.

Os produtores e escritores de séries sabem disso: foi preciso adicionar uma boa quantidade de realidade às receitas dos roteiros para o caldo não entornar com a audiência mais faminta pela crueza das coisas.

Tina (Liza Colón-Zayas), em "O Urso"
Tina (Liza Colón-Zayas), em "O Urso" Imagem: FX

O Urso é um exemplo disso: em uma família disfuncional, um talentoso cozinheiro volta para sua cidade natal para assumir o restaurante deixado pelo irmão adicto que se suicidou.

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A série brilha ao mostrar a comida a partir do seu poder social quase curativo — ou paliativo, se se quiser — que afinal coloca pessoas imperfeitas em torno da mesa, com seus problemas e suas fomes distintas.

"Se você realmente considerar, você sabe, os momentos especiais da sua vida? Eu sinto que você sabe que eles sempre acontecem perto da comida", diz o próprio Mikey (o irmão suicida) em um flashback nesta terceira temporada.

A série fala de ansiedade, de burnout, de depressões, de fracassos, de algumas alegrias, de certa esperança e do que está no menu da vida de todos nós. E consegue fazer isso de forma tão visceral que é impossível assistir a alguns de seus episódios e não desligar a TV angustiado ou mareado com as imagens mostradas.

Gastronomia documental

Em uma direção oposta, Onívoros (Omnivore), que a Apple+ lança também nesta semana, visa mostrar o que está além do prato de comida, ao contar histórias de pessoas que vivem no campo para produzir aquilo que comemos e que quase nunca valorizamos.

A série, que tem o famoso chef René Redzepi, do premiado Noma (eleito 5 vezes o melhor restaurante do mundo), como narrador, quer levar para a tela uma visão dos documentários à la National Geographic com foco na comida.

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Através de oito alimentos que moldam a forma como comemos no mundo hoje — chile, banana, café, milho, carne de porco, arroz, sal e atum — os episódios propõem uma odisseia global revelando as histórias inspiradoras por trás destes ingredientes que definem a nossa tapeçaria culinária.

Para falar de porco, escolhem uma pequena cidade na Espanha onde o animal é discutido desde a sala de aula, para narrar sobre as bananas, acompanha uma família que vive de plantar a fruta sempre sujeita às interferidas do clima cada vez menos previsível e dos preços de um mercado capitalista em que quem menos ganha são os seus membros.

No episódio que narra a importância do café como combustível indispensável da humanidade, a série vai a Ruanda para explicar como o grão transformou sua realidade e a de centenas de pessoas no país.

Da introdução das primeiras plantas de café pelos missionários alemães ao genocídio que devastou o país na década de 1990, "Onívoros" mostra o grão como um problema mas também como salvação para muitos indivíduos.

Ainda que tenha imagens de suspirar, como é suposto em um programa de comida, a série acerta em não adotar um olhar ingênuo e romantizado sobre a produção alimentar.

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Longe disso, fala das rotinas exaustivas dos camponeses, do sistema desequilibrado e dos impactos climáticos que estamos a forçar no meio ambiente. E fala através de histórias de pessoas reais, não (só) da visão eurocêntrica de um chef dinamarquês no conforto de seu restaurante projetado por arquitetos premiados.

O objetivo é abrir as janelas das cozinhas estreladas e sujar as Bikestock de terra para mostrar uma realidade mais dura que a lista de fornecedores nos menus dos restaurantes parecem emular.

É um avanço que tratemos a comida como ela deve ser, complexa e real, dura e com muitas camadas que nem sempre as lentes limpas das câmeras dos estudos podem mostrar.

"Comida nunca é só comida", repete Redzepi em vários momentos da série. É tudo aquilo que colocamos no prato, mas é também tudo aquilo que escolhemos em uma mordida como a versão do mundo em que desejamos viver.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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