Menos heróis, mais realidade: séries focam em lado sem glamour da comida
Não preciso estar inspirada. Não preciso ficar apaixonada. Eu não preciso fazer mágica. Não preciso salvar o mundo, sabe? Eu só quero alimentar meu filho.
A frase dita por Tina (Liza Colón-Zayas) e Mike (Jon Bernthal) no sexto episódio da terceira e nova temporada de O Urso (The Bear), que estreia no Brasil nesta quarta (17) pelo Disney+, é uma dura confissão da cozinheira sobre o que significa seu trabalho no mundo dos restaurantes.
Mas também representa a nova direção em que a própria gastronomia passou a ser representada nas telas, principalmente da televisão, com uma nova leva de séries menos interessadas em mostrar o lado glamoroso das cozinhas e mais focadas na realidade que há para além delas.
Abaixo a perfeição
É uma nova perspectiva que faltava aos produtos culturais que pululam nos streaming em todas as direções. Um passo além da estética propalada pelos pratos perfeitos de Chef's Table e seus personagens que procuravam emular a "narrativa do herói".
O chef que teve uma epifania e encontrou seu lugar na cozinha; o chef com vívidas memórias de infância que decidiu romper os modelos da cozinha do seu país e ser transgressor; o chef que procura sua verdade através do que serve. Nem todo chef, mas sempre um chef.
Tudo isso permeado por imagens de pratos em closes sexuais de molhos viscosos sobre vegetais perfeitos, mãos hábeis que formam gotas perfeitas sobre pratos brancos imaculados e música clássica no maior volume para tornar tudo ainda mais épico.
Foi-se o tempo em que a cozinha tinha que ser retratada como se fosse uma prática demasiadamente plástica para engajar. Fato é que depois do surgimento de Chef's Table, em 2015, o próprio universo da gastronomia sofreu muitos reveses.
Gente real
Com o #MeToo e as denúncias sobre os ambientes tóxicos que envolvem as cozinhas profissionais de diferentes partes do mundo, cozinheiros famosos deixaram de sustentar a aura de bons moços que antes estampavam as capas das revistas.
As cozinhas, mais do que espaços abertos e com equipamentos mais caros que um carro de luxo, ganharam também tetos de vidro: passou a ser difícil engolir pratos irrepreensíveis sem ter um sabor amargo na boca.
Os produtores e escritores de séries sabem disso: foi preciso adicionar uma boa quantidade de realidade às receitas dos roteiros para o caldo não entornar com a audiência mais faminta pela crueza das coisas.
O Urso é um exemplo disso: em uma família disfuncional, um talentoso cozinheiro volta para sua cidade natal para assumir o restaurante deixado pelo irmão adicto que se suicidou.
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OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberA série brilha ao mostrar a comida a partir do seu poder social quase curativo — ou paliativo, se se quiser — que afinal coloca pessoas imperfeitas em torno da mesa, com seus problemas e suas fomes distintas.
"Se você realmente considerar, você sabe, os momentos especiais da sua vida? Eu sinto que você sabe que eles sempre acontecem perto da comida", diz o próprio Mikey (o irmão suicida) em um flashback nesta terceira temporada.
A série fala de ansiedade, de burnout, de depressões, de fracassos, de algumas alegrias, de certa esperança e do que está no menu da vida de todos nós. E consegue fazer isso de forma tão visceral que é impossível assistir a alguns de seus episódios e não desligar a TV angustiado ou mareado com as imagens mostradas.
Gastronomia documental
Em uma direção oposta, Onívoros (Omnivore), que a Apple+ lança também nesta semana, visa mostrar o que está além do prato de comida, ao contar histórias de pessoas que vivem no campo para produzir aquilo que comemos e que quase nunca valorizamos.
A série, que tem o famoso chef René Redzepi, do premiado Noma (eleito 5 vezes o melhor restaurante do mundo), como narrador, quer levar para a tela uma visão dos documentários à la National Geographic com foco na comida.
Através de oito alimentos que moldam a forma como comemos no mundo hoje — chile, banana, café, milho, carne de porco, arroz, sal e atum — os episódios propõem uma odisseia global revelando as histórias inspiradoras por trás destes ingredientes que definem a nossa tapeçaria culinária.
Para falar de porco, escolhem uma pequena cidade na Espanha onde o animal é discutido desde a sala de aula, para narrar sobre as bananas, acompanha uma família que vive de plantar a fruta sempre sujeita às interferidas do clima cada vez menos previsível e dos preços de um mercado capitalista em que quem menos ganha são os seus membros.
No episódio que narra a importância do café como combustível indispensável da humanidade, a série vai a Ruanda para explicar como o grão transformou sua realidade e a de centenas de pessoas no país.
Da introdução das primeiras plantas de café pelos missionários alemães ao genocídio que devastou o país na década de 1990, "Onívoros" mostra o grão como um problema mas também como salvação para muitos indivíduos.
Ainda que tenha imagens de suspirar, como é suposto em um programa de comida, a série acerta em não adotar um olhar ingênuo e romantizado sobre a produção alimentar.
Longe disso, fala das rotinas exaustivas dos camponeses, do sistema desequilibrado e dos impactos climáticos que estamos a forçar no meio ambiente. E fala através de histórias de pessoas reais, não (só) da visão eurocêntrica de um chef dinamarquês no conforto de seu restaurante projetado por arquitetos premiados.
O objetivo é abrir as janelas das cozinhas estreladas e sujar as Bikestock de terra para mostrar uma realidade mais dura que a lista de fornecedores nos menus dos restaurantes parecem emular.
É um avanço que tratemos a comida como ela deve ser, complexa e real, dura e com muitas camadas que nem sempre as lentes limpas das câmeras dos estudos podem mostrar.
"Comida nunca é só comida", repete Redzepi em vários momentos da série. É tudo aquilo que colocamos no prato, mas é também tudo aquilo que escolhemos em uma mordida como a versão do mundo em que desejamos viver.
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