Até os almoços grátis têm seu preço: a agonia dos críticos gastronômicos
A máxima de que não existe almoço grátis vale também para críticos e jornalistas gastronômicos, profissionais que ganham seus salários para comer (e escrever!) sobre refeições pelas quais não precisam pagar — ao menos não diretamente.
Tudo na vida tem seus custos, e comer nos melhores restaurantes do mundo também cobra seu preço.
Há duas semanas, a notícia de que o crítico de restaurantes do The New York Times, Pete Wells, deixaria de fazer resenhas sobre os espaços gastronômicos da maior cidade americana caiu como uma bomba no meio jornalístico.
Não apenas porque Wells foi um dos mais longevos profissionais na função (12 anos) ou por exercer uma profissão quase em extinção no jornalismo gastronômico, mas sobretudo pelos motivos de seu afastamento — embora ele permaneça no jornal.
Em sua carta de despedida, publicada no NYT, Wells apontou sua saúde como um fator importante em sua decisão de abrir mão da posição.
Seus exames estavam ruins em todos os aspectos: colesterol, açúcar no sangue e hipertensão. Uma pré-diabetes, além de uma doença hepática (causada por excesso de gordura no fígado) e a constatação de que ele estava "tecnicamente obeso", tornaram-se alertas.
Após sua recuperação de uma cirurgia de hérnia, Wells tomou a decisão final de sair: "Em algum momento dessas duas semanas, ocorreu-me que eu não sou o meu trabalho", desabafou.
Questão de vida ou morte
Longe dos inúmeros tubos de coleta de sangue, a vida de um jornalista gastronômico é uma das mais invejadas do mundo: viajar para comer, jantar em restaurantes memoráveis, provar coisas que poucos mortais teriam a chance.
No entanto, a saúde cobra seu preço. Na carona do importante tema levantado pela carta de Wells, muitos jornais ao redor do mundo repercutiram o coro iniciado pelo jornalista, ouvindo outros críticos e profissionais sobre o tema.
Do La Repubblica, na Itália, ao The Guardian, no Reino Unido, as páginas dos jornais foram tomadas pela discussão. Na publicação inglesa, a crítica Grace Dent foi categórica:
É o melhor trabalho do mundo. Não posso reclamar. Mas a questão é que ele vai te matar, disse ela.
"Todos nós sabemos disso — a galera do jornalismo gastronômico, claro — mesmo que não falemos sobre isso, pois é um pequeno tabu".
A profissão é "boa demais" para alguém ousar reclamar sobre ela. Isso, claro, no plano romântico, que só valoriza o status da coisa toda. Na vida real, o prato nem sempre é tão bonito e apetitoso.
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Quero receber"Vi meus colegas ficarem maiores e, cada vez mais, mais doentes. Eventualmente, eles não conseguem fazer o trabalho, pois não estão bem o suficiente para andar do estacionamento até a mesa de jantar", continuou Dent.
O jornalista Andrea Cuomo, que escreve para Il Giornale e Gambero Rosso, também questionou a profissão em seu depoimento para o La Repubblica:
"Somos constantemente invejados porque comemos nos melhores restaurantes da Itália e do mundo, mas isso não nos salva de contraindicações que dizem respeito principalmente à nossa saúde", afirmou.
Alta (e exagerada) gastronomia
Mas a saída de Wells levanta uma bandeira importante não apenas para a saúde desses profissionais, mas também sobre a própria natureza dos restaurantes, especialmente os considerados de alta gastronomia.
Há uma ideia equivocada de que se come pouco em restaurantes desse tipo. Toda vez que posto um dos pratos dos jantares que costumo fazer a trabalho, posso sempre esperar o mesmo tipo de comentário: "economizaram na comida!", "Sair daí e ter que comer um dogão", como escreveu um amigo nesta semana.
A verdade é que, mesmo que não pareça, come-se muito nestes restaurantes também. Porque o que chega à mesa é uma sucessão de dezenas de pequenos pratos que formam um volume imenso de comida.
Alguns menus chegam a mais de 20 etapas e, em muitos deles, a quantidade de comida gira em torno de um quilo em uma única refeição (eu fiz as contas!), algo que poucos poderiam deglutir mesmo no mais apelativo dos "quilões".
Além da quantidade, há também as combinações de sabores e texturas que os chefs buscam, mais preocupados em mostrar seus talentos do que em como o comensal vai se sentir no outro dia.
Já cansei de acordar na manhã seguinte sem conseguir sequer sair da cama porque provei coisas ousadas ou fermentadas demais (muitas delas experiências sem grande preocupação com a segurança alimentar). Ou porque os oito tipos diferentes de animais consumidos, mais quantidades absurdas de manteiga e outras gorduras em um só jantar caíram como uma bomba no meu estômago já combalido.
A discussão levantada pela saída de Wells pode ser uma boa reflexão não apenas para os críticos e jornalistas do setor, mas também para todos os restaurantes que precisam entender que têm (ou deveriam ter) uma responsabilidade enorme na alimentação de seus clientes.
Saciados e felizes
Há, entretanto, um novo movimento de chefs que têm buscado trabalhar seus pratos também de um ponto de vista de saciedade e conforto digestivo, para além de suas criatividades desmedidas.
Um movimento que começou ainda na Nouvelle Cuisine, mas que perdeu tração em tempos que a gastronomia passou a valorizar mais técnicas e meios do que os fins e os próprios comensais.
Um passo que cada vez mais conta com nutricionistas e outros especialistas para tentar entender como funciona o metabolismo dos clientes durante e, principalmente, depois das refeições.
São cozinheiros inteligentes, afinal, que sabem que o melhor cliente não é só aquele que sai feliz e satisfeito, mas principalmente aquele que quer voltar.
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