Rafael Tonon

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Opinião

Quanto mais quente melhor? Amor ou ódio por pimenta pode ser 'psicológico'

O mundo é dividido entre aqueles que sempre pedem molho de pimenta e os que são capazes de pedir um novo prato se souberem que há algum resquício de picância na comida...

... e estes grupos geralmente jantam juntos.

Para todos nós, dar uma dentada em uma malagueta é como estar diante da porta do purgatório: pode levar ao paraíso dos prazeres sensoriais ou jogar no mais terrível e incandescente inferno da aflição. As reações para um lado ou para outro são imprevisíveis e levam em conta a predisposição que algumas pessoas têm para a picância.

Ou pelo menos é o que pensávamos. Um novo estudo quer provar que os efeitos de uma colher de molho de habanero no seu corpo estão, na verdade, muito mais na sua mente.

Expectativa x realidade

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Imagem: Getty Images

Para comprovar a teoria, um grupo de cientistas chineses escaneou os cérebros de 24 pessoas que gostavam de comidas apimentadas e 22 que não gostavam.

Durante os exames, que permitiam monitorar seus cérebros, cada uma delas (de um grupo ou de outro) recebeu 30 jatos de molho picante, entre os mais suaves e outros mais fortes.

Antes de cada jato, os pesquisadores mostravam uma pimenta azul ou vermelha aos participantes. A ideia era usar as cores para tentar antever alguma pista em suas mentes.

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Enquanto o azul é uma cor inusitada no universo das pimentas, sem qualquer relação com o grau de picância e que não antecipava qualquer informação prévia, as pimentas vermelhas costumam ser associadas a um alto nível de ardor.

No caso dos amantes de comidas apimentadas, partes de seus cérebros se ativavam quando os molhos mais picantes eram administrados — quanto mais picante o tempero, mais intenso era o prazer.

Mas no caso dos que não são fãs de picância, algo curioso ocorreu: embora seus centros de dor se ativassem ao receberem o molho picante nos testes, a experiência de dor aumentou drasticamente quando sabiam que receberiam o molho mais picante — ou achavam que sim, no caso das pimentas vermelhas.

Quando viam a pimenta azul, o efeito não era percebido com a mesma intensidade, ainda que níveis muito parecidos de picância fossem administrados nos dois casos.

"Fiquei surpreso com o quão fortemente as expectativas negativas amplificaram a resposta de dor do cérebro, embora o estímulo fosse o mesmo", disse à CNN Yi Luo, pesquisador da escola de psicologia e ciência cognitiva da Universidade de Xangai.

Para o autor do estudo, isso prova como nossa antecipação de desconforto pode intensificar significativamente a experiência de dor.

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O corpo e a memória de cada um

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Imagem: Getty Images

Claro, isso não descarta os fatores culturais ou genéticos de cada um: a propensão do nosso corpo a processar a picância e sentir prazer (ou grande desconforto) ao ser exposto a ela.

Mas abre um caminho para entender como parte da percepção do sabor do que comemos pode ser construída como uma expectativa ou, em alguns casos, uma ideia pré-concebida.

Transformar algo desagradável em algo prazeroso exige perder o medo, se entregar. Ou, no jargão culinário, experimentar. Muitas pessoas dizem não gostar de um sabor por conta de uma memória da infância.

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Imagem: Getty Images
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Muitas vezes, nem lembram do sabor, mas a imagem gravada no cérebro é negativa e causa aversão. Para os menos abertos a mudar de opinião, experimentar de novo pode ser apenas a confirmação desse desprazer.

Uma questão de expectativas, como dizem os pesquisadores do estudo. Nosso corpo é capaz de antecipar a sensação de prazer ou sofrimento apenas pela associação que fazemos de um alimento.

E como cada um de nós percebe exatamente os mesmos sabores de maneiras diferentes, nossas ideias mentais sobre eles definem como somos capazes de interpretá-los.

É mais uma questão de interpretação do que de uma percepção real, ainda que tenhamos predisposições inatas a gostar mais de alguns sabores do que de outros, o que explica por que alguns adoram alimentos doces enquanto outros só conseguem comer sobremesas mais ácidas.

No caso da pimenta, isso é ainda mais claro: não se trata apenas de se habituar aos graus de picância — entre 3.500 a 20.000 unidades na escala Scoville, inventada pelo cientista homônimo em 1912 e que permanece a medida universal do ardor.

Mas, principalmente, de se familiarizar com os efeitos que ela pode ter no seu corpo. Ao esperar por sensações positivas, seu organismo é capaz de emulá-las. Se pensar no pior, é melhor ter um pão por perto.

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No primeiro episódio da série Onívoros, na Apple TV, o famoso chef e narrador René Redzepi decide criar uma experiência coletiva com sua equipe e clientes.

"Onívoros" (Omnivore), da Apple+
"Onívoros" (Omnivore), da Apple+ Imagem: Divulgação

Oferece primeiro ao staff e depois a quem visitasse o Noma — seu restaurante três estrelas Michelin em Copenhague — a pimenta mais picante já cultivada em seu país, plantada por ele mesmo no quintal.

Em uma espécie de sacralidade (como uma hóstia católica), todos os funcionários pegam uma pimenta entre os dedos e, numa só vez, mastigam e engolem a baga alaranjada e incandescente, como uma epifania de fogo e sucos gástricos.

Enquanto alguns deixam um sorriso escapar, outros estão visivelmente sofrendo: enxugam a testa, andam em zigue-zague, abrem a boca como se tentassem liberar o fogo que lhes consome como dragões.

Depois, os clientes seguem o mesmo ritual. Podem escolher entre uma pimenta mais suave e a bhut orange Copenhague. A maioria escolhe a segunda.

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Alguns com a expectativa de um deleite. Outros com medo de que, em minutos, estarão abraçados a uma privada, vomitando a lava que consome seus estômagos.

"O picante se tornou parte da nossa identidade, um gosto do que significa ser humano: sentir dor em busca do prazer, sempre ultrapassando todos os limites", explica Redzepi, em voz off.

Para onde esse limite levará cada um é uma questão de projeção e expectativa pessoal. E de como algumas milhares de unidades de Scoville podem causticar as tripas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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