'Alimento pessoas': em tragédias, cozinheiros fazem o que políticos ignoram
Em meio ao desespero de moradores que tiveram suas casas devastadas pelas chuvas e enchentes históricas que tomaram a Espanha na semana passada, uma cena viralizou: em Jerez de la Frontera, no sul do país, um homem com um cobertor na mão e uma panela na outra tentava retirar tudo o que podia de sua casa.
A repórter da TV pergunta sobre o que é a panela: ele diz que, entre sofás e cadeiras, era preciso salvar também as almôndegas feitas por sua esposa.
A jornalista também quis saber se a água trazida pelas inundações tinha afetado a sua casa: "mais de meio metro", ele respondeu. "Por isso estou tentando salvar tudo o que posso", disse.
Na próxima, espero poder te receber novamente em minha casa, desta vez com as almôndegas ainda quentinhas.
@delaguetto83 A este hombre de Jerez se le ha inundado la casa y su preocupación ha sido salvar una olla de albóndigas. España es única #Dana #valencia #lluvia #aemet #españa #humor #andalucia ? sonido original - Delaguetto83
Comida em ação
Em meio a tragédias, a comida nos humaniza. Não apenas porque representa uma necessidade fundamental para a nossa sobrevivência, mas sobretudo porque desperta nas pessoas envolvidas nas piores situações um senso de comunidade que as lembra que não estão sozinhas.
Um ano de chuva em oito horas e mais de 100 mortes levaram o governo a decretar três dias de luto nacional. A região mais atingida até agora foi Valência, mas do norte ao sul, o país passa por uma situação de calamidade.
Iniciativas para ajudar os desabrigados e aqueles que perderam muito, inclusive parentes e pessoas próximas, partem de restaurantes e cozinheiros. O chef Ricard Camarena, que comanda o restaurante homônimo, com duas estrelas, em Valência, se deslocou a Cheste para cozinhar para os necessitados.
Em 24 horas, ele e uma equipe de 80 voluntários cozinharam mais de 25 mil refeições para as pessoas que não tinham para onde voltar e preparar o jantar. Em fornos enormes, cozinharam milhares de quilos de — elas, de novo! — almôndegas.
Também prepararam tortillas e empanadas, além de outras receitas, para atender a todos. A água também acabou entrando na cozinha industrial onde cozinhavam, mas não o suficiente para interromper o trabalho.
Agora, ele se juntou a outros proeminentes chefs da região (Begoña Rodrigo e Quique Dacosta) e, com a ajuda da Associação Empresarial Valenciana (AVE), criaram a iniciativa global de solidariedade "De Valência a Valência" para arrecadar fundos.
No dia 13 de dezembro, jantares de arrecadação de fundos serão organizados simultaneamente em toda a Espanha e nas principais capitais mundiais. O dinheiro servirá para reconstruir negócios em bairros devastados pela tempestade Dana.
As vendas começam amanhã, na quinta-feira, dia 7, e são uma tentativa de dar uma resposta direta e urgente aos pequenos negócios e restaurantes que viram seus edifícios engolidos pela força da água.
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Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberDo País Basco a Nova York, passando pela Galícia, Aragão, Andaluzia, Madrid, Catalunha e muitas cidades estrangeiras, chefs de renome (como Massimo Bottura, Rene Redzepi e o brasileiro Alex Atala) organizam os jantares beneficentes simultâneos, demonstrando o poder da gastronomia para a solidariedade.
"Queremos que o dia 13 de dezembro seja um dia histórico, um símbolo de esperança e solidariedade, não apenas para nossa comunidade, mas para todos aqueles que acreditam no poder da unidade e da ajuda mútua", disse Ricard Camarena na apresentação da iniciativa.
"Eu alimento pessoas"
No final da apresentação, Ricard revelou que o chef hispano-americano José Andrés se comprometeu a doar o primeiro milhão de euros para a iniciativa.
Andrés é personagem conhecido neste meio, onde atua com a organização não-governamental World Central Kitchen (WCK), criada para distribuir alimento a pessoas vítimas de desastres naturais, o que o tornou um ícone da gastronomia mundial.
De terremotos a outros desastres ambientais de escala mundial, passando pela recente guerra na Ucrânia, basta a situação se complicar que lá está ele mobilizando um exército para alimentar as pessoas necessitadas.
Já se tornou uma imagem comum na imprensa e nas redes sociais: ele vestindo colete utilitário, boné na cabeça e algumas marmitas nas mãos, com os mais devastadores cenários por trás: furacão Maria, em Porto Rico; terremoto no Haiti; as inundações em Wilmington, na Carolina do Norte.
O projeto de Andrés também chegou ao Brasil quando uma situação de tempestade e enchentes semelhante à da Espanha devastou partes do estado do Rio Grande do Sul. Lá estava o WCK para alimentar as pessoas: o projeto já serviu mais de 70 milhões de refeições pelo mundo.
O trabalho é tentar chegar antes e ser à prova de burocracias: quando o desastre acontece, Andrés e seus estrategistas mobilizam exércitos de pessoas para se deslocarem o mais rápido possível aos lugares afetados e começarem a alimentar as pessoas.
No documentário "We Feed People", realizado pelo National Geographic e exibido no Brasil pela plataforma de streaming Disney+, fica claro o trabalho de caráter pragmático do chef.
Em uma das cenas das enchentes na Carolina do Norte, Andrés se reúne com uma equipe para estabelecer um plano para instalar sete cozinhas. Uma repórter pergunta o que ele faz ali, com tantos mapas nas mãos. "Eu alimento pessoas e crio sistemas", ele responde.
A estratégia é quase de guerra: o importante é poder usar as doações que a ONG recebe para colocar as pessoas o mais rápido possível no terreno, montar as cozinhas e cozinhar. Foi assim na Faixa de Gaza e na Flórida, atingida recentemente por um furacão.
A mesma lógica vale para o projeto de Valência, que pretende usar a força (e a fama) da gastronomia para arrecadar fundos rapidamente com a venda dos jantares, dando tempo para que os restaurantes se organizem para promovê-los.
Melhores que políticos e reis
São chefs que sabem que usar sua projeção e toda a mídia que conseguem em torno de si pode ser uma arma importante em momentos em que é preciso ser solidário.
Sem a burocracia dos governos e as desculpas e disputas partidárias, eles conseguem alimentar as pessoas em situação de emergência ao mesmo tempo que aproveitam para levantar dinheiro suficiente para ajudá-las a reconstruir aquilo que perderam.
As imagens da população espanhola jogando lama no primeiro-ministro Pedro Sánchez e no rei Felipe 6° são uma prova do descontentamento com a classe política em meio a situações de emergência.
Neste cenário, a gastronomia emerge como uma potente ferramenta de ajuda e solidariedade, que só a comida pode angariar. Enfim, uma boa justificativa para toda a fama que os chefs conquistaram nos últimos anos.
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