De 'pão comum' a hype disputado: o panetone também é tradição do Brasil?
Nesta semana, uma campanha de uma marca de roupas nas redes sociais causou polêmica — como é comum em tudo que acontece na internet. Vestidos com peças da marca, a atriz Bruna Marquezine e o chef pâtissier superstar Cédric Grolet preparam juntos uma versão de chocotone em um vídeo que emula as gravações famosas nos perfis dele com distintas celebridades.
Bruna foi a Paris visitar a cozinha de Grolet e aparece "metendo a mão na massa" com ele para fazer uma versão trompe l'oeil da receita. Ou seja, um chocotone que parece chocotone, mas é, na verdade, um bolo com recheios e camadas.
Ao som de tamborins, os dois preparam a versão estilizada que, segundo o texto da publicação no Instagram, "é uma sobremesa que é tradição no Brasil".
É mesmo difícil pensar em Natal por aqui sem trazer à mente montanhas de caixas de panetones e chocotones dominando os corredores dos supermercados de todo o país.
Aos poucos, aliás, o panetone ganhou as prateleiras dos Estados Unidos, Singapura e Portugal — e também da França, onde outras sobremesas natalinas mais tradicionais, como o bûche de Noël, sempre dominaram.
Mas será que podemos dizer que se trata mesmo de uma "tradição do Brasil"? O fato é que a globalização do panetone fez dele uma tradição tão italiana quanto nossa.
No começo, rejeitado
Aliás, nem mesmo na Itália o panetone é uma tradição tão arraigada. Alguns historiadores defendem que, antes do século 20, ele era apenas um pão fino e duro recheado com um punhado de passas, que conferiam um sabor distinto à receita.
No início, era consumido por pessoas pobres e não tinha ligação com o Natal. O doce mais se parecia com um stollen alemão ou um fruitcake britânico, e seu formato nada lembrava o atual.
Foi só com a unificação da Itália, na segunda metade do século 19, que o pão se tornou um símbolo do Natal, por ser um presente frequentemente embrulhado em papéis e laços bonitos.
O panetone como o conhecemos hoje — vendido dentro de caixas — é uma invenção da indústria de panificação italiana, que passou a apostar em ingredientes mais baratos, como frutas cristalizadas e leite em pó, para popularizar a receita.
Na década de 1920, Angelo Motta, dono da indústria Motta, apresentou uma nova receita de massa e deu início à "tradição" do panetone em formato de cúpula, logo copiada na Itália e, depois, no mundo inteiro.
"Depois de uma bizarra viagem ao passado, o panetone finalmente se tornou o que nunca havia sido: um produto artesanal", escreve Alberto Grandi, historiador e professor de história na Universidade de Parma, em As mentiras da nonna - Como o marketing inventou a cozinha italiana, publicado pela editora Todavia.
Veio o hype - e as polêmicas
Nos últimos anos, o panetone virou artigo de luxo, sendo produzido até pelas maiores grifes do mundo, como Gucci e Dolce & Gabbana.
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Quero receberChefs estrelados correram para apresentar suas versões, enquanto confeitarias lançaram criações que vão de gergelim negro a Aperol Spritz, passando por massas recheadas com trufas — as de verdade, não as de chocolate.
Comercialmente (como muitas "tradições" inventadas por comerciantes para agregar status), o panetone tornou-se um símbolo nacional — e agora mundial — do Natal.
Pães doces, extravagantemente embrulhados com fitas e vendidos em caixas de luxo com ingredientes exclusivos, se tornaram a tônica atual da receita, e o hype do panetone criou um impasse no seu núcleo mais tradicional.
Há disputas entre puristas e confeiteiros criativos, entre tradicionalistas e modernistas, entre chefs e comerciantes. Essas brigas ocorrem não só nas prateleiras dos supermercados, mas também em altos escalões políticos.
Sindicatos de padeiros italianos clamam por regras e restrições, buscando propriedade sobre a receita — e, claro, também algum lucro. A ideia é torná-lo uma receita regional protegida sob o sistema de rotulagem da União Europeia, fazendo do panetone um patrimônio imaterial da UNESCO, como aconteceu com a pizza napolitana em 2017.
Isso, segundo os padeiros, incentivaria as pessoas a optarem pelo panetone original, autêntico, em vez das receitas com recheios como cacio e pepe, saquê e doce de leite.
Talvez já seja tarde para isso. Em países da América Latina onde a imigração italiana foi massiva, como Peru, Argentina e Brasil, pode-se dizer que o panetone (e suas inúmeras variações) é tão local quanto italiano.
A produção no Brasil, por exemplo, já superou a italiana. Nossos panetones chegam a mercados cobiçados no mundo todo, como os EUA. São mais de 200 milhões de unidades produzidas por ano, quase um por habitante do país.
Mais um número para jogarmos na internet e esfregarmos na cara dos gringos. Se não era, a princípio, é difícil dizer agora que o panetone não é também uma tradição muito nossa.