Rafael Tonon

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Opinião

Conceitos goela abaixo: tirania dos restaurantes faz comer fora algo chato

Você entra no restaurante e, depois de aguardar por alguns minutos, é levado a uma sala de espera, onde o garçom faz uma longa explicação sobre o conceito da casa.

"Aqui, propomos refeições de partilha. Por isso, sugerimos que a mesa peça entre 5 e 6 pratos no mínimo para conhecer melhor o trabalho do nosso chef", finaliza com um sorriso.

Ninguém pergunta se você e seus amigos chegaram com fome, se pretendem passar a noite toda ou só comer algo rápido antes de ir ao teatro.

A única dúvida é se alguém tem alergias ou restrições. "Só a camarão", um amigo responde. Ao que ele retruca: "Nosso chef trabalha apenas com produtos locais do nosso entorno; o senhor nunca encontrará camarões nas nossas receitas."

Na mesa, as explicações retornam — por vezes extensas — sobre os métodos de cocção usados pela equipe e a procedência de cada ingrediente.

Antes de deixá-los, enfim, comer, o garçom irrompe novamente: "O chef sugere comer os primeiros snacks em um só bocado, o segundo em duas dentadas e, depois, usar a colher para o caldo. Já o terceiro é com garfo e faca", finaliza com outro sorriso antes de desaparecer pelo salão.

Antes que você consiga, enfim, pinçar o crocante de tapioca com algas com os dedos e enfiar na boca com cuidado para não sujar a camisa, a sommelière aparece na mesa para falar sobre o próximo vinho.

Você olha para a taça diante de si e percebe que o espumante natural que ela apresentou como de um novo produtor do sul, com vinificação semelhante aos melhores Crémant de Loire, ainda está pela metade.

Com algumas garrafas na mão, ela começa a explicar sobre regiões, métodos de fermentação e sugere vivamente um laranja "não muito funky" que vai casar perfeitamente com os próximos pratos.

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Sem conseguir abrir a boca para dizer nada, você apenas assente com a cabeça.

No meio do jantar, ao sentir vontade de ir ao banheiro, você dobra o guardanapo de linho que estava no colo, pousa-o sobre a mesa e se levanta.

Antes mesmo do primeiro passo, o maître surge e diz que o próximo prato está a caminho, e que você deveria avisar com dois pratos de antecedência a qualquer necessidade de deixar a mesa.

Você senta e, com a bexiga cheia, prova o prato que chega antes de poder se aliviar. Do início ao fim do jantar, as imposições, explicações e "sugestões" continuam, e você paga a conta sem saber se realmente foi feliz comendo ali.

Tempos chatos

A cena é, claro, fictícia — ainda que adaptada de muitas refeições que tenho tido nos últimos meses em restaurantes que frequentei em diversos cantos do mundo.

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A sensação, no entanto, tem sido cada vez mais real: quando foi que sair para comer fora ficou tão chato?

Falo de uma espécie de tirania que passou a dominar os restaurantes, onde a vontade do chef — e de sua equipe — se impõe sobre a nossa, os clientes.

Houve um tempo em que íamos aos restaurantes e os cardápios extensos buscavam se adaptar aos gostos de todos.

"Posso pedir a merluza à la belle meunière com o risotto de limão no lugar do arroz à grega?" Sem nem consultar o cozinheiro, o garçom fechava o cardápio, colocava-o embaixo do braço e respondia com um sonoro "sim."

Esse garçom sabia o nome do nosso pai, lembrava-se da última vez que comemos ali e segredava que os mexilhões haviam chegado fresquíssimos naquela manhã, direto da praia.

Eram tempos em que o cliente era o rei e, por isso, achava que sempre tinha razão. O tempo, ainda bem, mostrou que as coisas não são bem assim.

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Excelência e diversão

Mas, por outro lado, inverteu o eixo das prioridades, colocando no centro o conceito, o chef autoral e suas crenças sobre o que a cozinha deve ser.

Nessa toada, muitos deles patinam, porque a verdade é que comer fora deveria ser um prazer, e não um exercício de obediência a um manifesto gastronômico.

Não é que os tempos antigos fossem perfeitos — afinal, a ideia de que "o cliente sempre tem razão" também gerou abusos e situações injustas com quem trabalha em restaurantes.

Mas a inversão de prioridades trouxe um excesso de controle, transformando refeições em experiências excessivamente regimentadas. A busca por excelência técnica, storytelling e conexão com ingredientes locais são valores importantes, que todos apreciamos.

Mas, quando levados ao extremo, podem eclipsar o propósito mais simples de um restaurante: oferecer hospitalidade e momentos agradáveis.

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Esquecemos que uma boa experiência é feita de equilíbrio: entre a criatividade do chef e as expectativas do cliente. Entre a explicação detalhada de um prato e o espaço para saboreá-lo em silêncio. Entre inovação e conforto.

Os chefs saíram das sombras das cozinhas, onde ficaram relegados por tanto tempo. Ainda bem!

Chefs no divã

Mas, com os holofotes que conquistaram, surgiu a necessidade de provar seu valor constantemente, explicando cada detalhe, demonstrando criatividade e engajamento com sustentabilidade.

Nessa ânsia, talvez tenham deixado o cliente para trás, que agora precisa engolir tudo de forma quase passiva, sem levantar, sem questionar, sem gargalhar alto para não atrapalhar o espetáculo.

Na maioria desses lugares, a comida é excitante, mas o restaurante é chato. Ou pelo menos a "experiência" criada para nos fazer entender e apreciar essa comida.

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Tenho a impressão de que as pessoas estão cansando do peso que virou sair para comer em restaurantes mais autorais hoje em dia. E, assim, buscam conceitos mais simples, confortáveis e relaxados, com menos imposições.

Até mesmo alguns chefs que fomentaram essa era dos "restaurantes de experiência" perceberam que o pêndulo já está indo para o outro lado.

Estão, então, transformando seus espaços em lugares mais divertidos. Cito exemplos: em Bangkok, no restaurante do chef Gaggan Anand, onde o jantar termina como uma festa entre amigos — alguns feitos ali mesmo, naquela noite.

Em Lisboa, no BouBou's, que, a meio da semana, se transforma em um "wine casino" no qual os clientes recebem fichas para adivinhar regiões, países ou variedades de vinho.

No Rio, onde o chef Thomas Troisgros criou, no segundo andar de seu restaurante Toto, uma cozinha animada sob o conceito de "fun dining", com trilha sonora para cantar junto.

Queremos comida excitante, sim. Queremos chefs criativos que desafiem nossos paladares e mostrem o potencial da gastronomia. Mas, mais do que isso, queremos lembrar que comer fora pode — e deve — ser divertido. De novo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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