Melhor panetone do mundo é de um mexicano: receita sem 'dono' é problema?
O melhor panetone do mundo é mexicano. Ou melhor, feito por um mexicano em uma padaria em Barcelona, na Espanha. Nada que o ligue diretamente à Itália, exceto pelo concurso que o premiou.
Ton Cortés, do Suca'l, ganhou o título de melhor panetone do mundo na Copa do Mundo de Panetone de 2024, realizada no Palazzo Castiglioni, em Milão.
Com uma carreira de músico especializado em música medieval e como padeiro apaixonado, Cortés mudou-se para Barcelona para combinar seu amor pelo fagote barroco com a fabricação de pães e doces artesanais.
O mexicano já havia conquistado reconhecimento por seu panetone em 2019, quando ganhou o prêmio de Melhor Panetone da Espanha. Mas ganhar o mundial justamente na Itália é uma espécie de disparate — principalmente se pensarmos que o segundo e o terceiro lugar eram italianos.
Ou uma constatação de que, no mundo globalizado em que vivemos, as fronteiras se tornam cada vez mais invisíveis na gastronomia: o melhor panetone, um pão nascido na Itália, pode, sim, sair das mãos de um padeiro que sequer pisou no país.
O mundo ao alcance
A ideia de globalização está presente em cada prato que consumimos, pelo menos desde as Grandes Navegações, quando os ingredientes de um continente passaram a ser levados e, depois, cultivados em outros, totalmente distintos.
Hoje, restaurantes oferecem menus com pratos e ingredientes que cruzaram fronteiras. Nas últimas décadas, o comércio global, a migração e o aumento da riqueza aceleraram essa integração culinária.
O sushi, antes desconhecido ou ignorado por muitas nações, tornou-se onipresente em supermercados, restaurantes de bairro e até nas lancheiras escolares.
O mesmo acontece com tacos, ceviche, cheeseburger e tantas outras receitas que tiveram sua origem bem longe de onde vivemos, mas que, mesmo assim, se tornaram tão "nossas" quanto dos países onde nasceram.
E assim, surge uma sensação de que vivemos, de fato, em uma "aldeia global": imensamente conectada, mas paradoxalmente homogênea.
Porque, apesar das tradições locais, todos comemos o mesmo. Basta visitar uma cidade desconhecida pela primeira vez, e o panorama de restaurantes é incrivelmente familiar. Sem falar das praças de alimentação nos shoppings, onde tudo é ainda mais padronizado.
Os restaurantes, que antes ofereciam apenas algumas cozinhas estrangeiras, agora exibem uma variedade impressionante, incluindo pratos de países menores e fusões de estilos.
Nos EUA, o Yelp, plataforma de reservas, listava 157 tipos de cozinhas há alguns anos. Hoje, são mais de 250 categorias, um reflexo da crescente diversidade gastronômica.
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Quero receberIsso sem mencionar as equipes dos restaurantes, muitas vezes compostas por pessoas de diferentes países, que migram em busca de novas oportunidades e contribuem para um caldo multicultural ainda mais rico.
Nos supermercados, os ingredientes de cozinhas estrangeiras (ou étnicos, que é a pior forma de chamar uma cultura que não é a nossa) passaram que pequenas prateleiras para corredores inteiros.
Caviar? Tomates italianos? Tâmaras Medjool? Melão de Yubari? Tudo está ao alcance de nossas mãos — e, em alguns desses casos, de poucas carteiras.
O risco global
Claro que toda acessibilidade que nos permite alcançar outras culturas através da gastronomia é louvável e deve ser celebrada. Mas a ideia de que nossas dietas estão se uniformizando dessa forma é, no mínimo, preocupante.
Porque isso coloca em risco práticas, receitas e culturas que podem ser esquecidas ou deixadas de lado, enquanto outras "cozinhas do mundo" acabam por dominar os paladares globais.
Não há problema algum em um padeiro-confeiteiro mexicano criar um panetone de altíssimo nível. O verdadeiro desafio é garantir que, ao fazer isso, ele não abandone as técnicas e os sabores que dão vida a pães tradicionais como conchas, orejas ou pan de muerto.
Tudo bem termos mais panetones pelo mundo — desde que não percamos outros pães e tradições pelo caminho.
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