Preço dita o prato? A perigosa política da escolha pelo mais barato
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A frase dita pelo presidente Lula viralizou e ajudou a aprofundar a crise de "comunicação" que o governo vem passando: em uma entrevista a rádios na Bahia, ele aconselhou a população "a não comprar aquilo que acha que está caro".
Afirmava o presidente que "uma das coisas mais importantes para que a gente possa controlar o preço é o próprio povo", em uma alusão ao poder do consumidor em fazer pressão para a baixa de preços ao não comprar determinados produtos.
Nesta semana, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga veio a público defender o raciocínio de Lula de que a população deveria buscar substituir os alimentos que estão caros por outros mais baratos.
Segundo o economista, é assim que o mercado funciona: a inflação dos alimentos flutua de acordo com os preços internacionais, com a taxa de câmbio e fatores climáticos.
Fraga afirmou que essa "inflação de alimentos não tem milagre" e que há razão ao pedir que a população busque os itens mais baratos.
Não acho que seja uma "lição de economia" que a população brasileira já não conheça muito bem: milhões de famílias lidam com essa questão todos os dias quando vão ao supermercado.
Quando o dinheiro não dá para a carne, escolhem o frango; quando o preço dos ovos sobe, colocam menos na cesta; quando o salário não cobre mais do que o básico, garantem ao menos o arroz e o feijão.
No entanto, o problema do discurso político do 'é o mercado, estúpido' não é apenas a (falta de) responsabilidade dos governantes em criar medidas que protejam a alimentação da população.
Ele escancara um problema sistêmico muito mais profundo no Brasil: alimentos realmente nutritivos, especialmente os frescos e integrais, não são acessíveis para todos — independentemente da inflação.
Quando um cacho de banana custa mais do que um pacote de bolachas, temos um problema sério. Quando uma cartela de ovos sai pelo dobro do preço de uma pizza congelada, também.
Aqui não se trata apenas de preço, mas de acesso: o que comem as pessoas quando o dinheiro mal dá para comer? Sempre o mais barato, claro — algo que nem Lula nem Fraga precisavam sugerir.

Mesa brasileira em mudança
O Guia Alimentar para a População Brasileira, desenvolvido pelo Ministério da Saúde e referência mundial, recomenda a priorização de alimentos in natura ou minimamente processados para uma alimentação saudável.
Mas a realidade é outra. O mais barato costuma ser o ultraprocessado, cada vez mais presente e dominante na alimentação dos brasileiros.
Repletos de corantes artificiais, intensificadores de sabor, emulsificantes e gorduras hidrogenadas, esses produtos vêm ganhando espaço não por preferência, mas por necessidade econômica.
Apesar de alimentos frescos ou minimamente processados ainda representarem 48,6% da alimentação dos brasileiros, o consumo de ultraprocessados tem aumentado.
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os ultraprocessados passaram de 14,3% em 2002-2003 para 19,4% em 2017-2018 na dieta alimentar brasileira.
A partir dos cálculos mensais dos 102 alimentos e bebidas mais consumidos no Brasil, um recente estudo analisou a evolução dos de alimentos e bebidas no Brasil de 1995 a 2017 e fez projeções até 2030, indicando uma tendência preocupante: alimentos ultraprocessados estão se tornando mais baratos do que os alimentos saudáveis.
Até pouco tempo, o Brasil se destacava por ter alimentos in natura acessíveis, favorecendo uma alimentação saudável. Em 1995, os alimentos in natura eram os mais baratos (R$ 3,45/kg), mas seu preço subiu constantemente até R$ 4,69/kg em 2017.
Os alimentos ultraprocessados ficaram mais caros até os anos 2000, mas, a partir daí, começaram a baratear, tornando-se mais acessíveis. A previsão para 2030 é que os alimentos in natura continuem aumentando de preço (R$ 5,24/kg), enquanto os ultraprocessados devem cair para R$ 4,34/kg.

O que está em jogo
Essa inversão pode transformar radicalmente os hábitos alimentares dos brasileiros, acelerando uma transição para dietas cada vez mais ultraprocessadas, o que já preocupa especialistas.
Os efeitos disso não são apenas individuais, mas coletivos e econômicos: as doenças associadas ao consumo excessivo desses produtos, incluindo cânceres e doenças cardiovasculares, já custam mais de R$ 10 bilhões anuais aos cofres públicos.
O turning point deve acontecer no ano que vem, segundo as projeções, quando os alimentos ultraprocessados devem se tornar mais baratos que os alimentos saudáveis, consolidando uma inversão de preços que pode impactar negativamente a alimentação da população.
Claro que o consumo não se define somente pelo preço — fatores como alimentação por estresse e falta de tempo para cozinhar também impulsionam o crescimento dos ultraprocessados.
Mas é inegável que o valor nas prateleiras é o fator mais determinante: nos EUA, por exemplo, o custo influencia a escolha de 60% dos consumidores, fazendo com que priorizem produtos ultraprocessados em vez de alimentos naturais.
O Brasil, que historicamente se orgulhava de uma dieta baseada em alimentos frescos, está prestes a entrar nessa mesma lógica — e o impacto pode ser irreversível.
Se a lógica do mercado empurra os consumidores para produtos ultraprocessados, enquanto os alimentos frescos se tornam um luxo, o problema não é apenas individual, mas estrutural.
Deixar a regulação da alimentação exclusivamente nas mãos da dinâmica de oferta e demanda significa aceitar um futuro em que escolhas saudáveis se tornam inviáveis para grande parte da população.
E isso não é sobre preço, mas sobre valores — aqueles que os nossos políticos parecem ignorar.
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