Sangue, suor e lágrimas: de Paris a SP, Bloody Mary é puro suco de 2023
Tem dias que a gente se sente/Como quem partiu ou morreu/A gente estancou de repente/Ou foi o mundo então que cresceu/A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar/Mas eis que chega a roda-viva/E carrega o destino pra lá
Ao contrário de outras colunas, esta começa com a trilha para harmonizar. A composição de Chico Buarque (na versão de MPB4, óbvio) é dura, complexa, difícil de engolir. Mas real e cabe.
2022 foi intenso, 2021 e 2020 nem aconteceram, 2019 agridoce. 2023... bem, 2023 foi uma pancada na alma. E esses socos do peito não são de todo ruins, mas como é difícil ver o copo meio cheio numa montanha-russa de reviravoltas e doses nada doces no mundo de fora e de dentro da gente.
Por isso, elejo para drinque do ano o Bloody Mary. No começo, um caos de sabor e corpo. No meio, uma aventura instigante. No final, tudo aquilo que você precisava - que seja um chacoalho, uma ruptura, um choque, um toque.
Não por coincidência, e talvez por plano divino, foi a bebida que pipocou em três grandes momentos do meu 2023. Mas tenho certeza que nas esquinas desse texto, ele também vai encontrar algum pouco do seu balanço anual, leitor.
Sangue em Paris
A minha saga da Maria Sangrenta começa onde, supostamente, tudo começou.
Reza a lenda que o drinque foi criado no Harry's Bar de Paris, fundado em 1911, e foi por lá que eu, em nas minhas férias de abril, totalmente esperançosa com um ano que não tinha começado há tanto tempo (ei, eu finalmente estava pisando em uma das cidades mais lindas do mundo), me abriguei de chuva torrencial e procurei comida, bebida e um lugar para me secar.
Uma das teorias mais aceitas do mundo da coquetelaria, estampada no cardápio do Harry's, defende que o bartender Fernand Petiot, em 1920, misturou vodca com suco de tomate e uns temperos. Agradou o pessoal e o resto é história.
Mergulhei ao estilo "Meia-noite em Paris" num ambiente repleto de bandeirolas de times americanos, sentada numa cadeirinha de madeira e servida pura e simples (sem muita explicação e encheção).
A receita segue o clássico do bartender morto em 1975 e é deliciosa para iniciados do coquetel salgado e umami. O ponto baixo foi harmonizar com uns milhos desidratados, já que comida mesmo só depois das 17h - e só hot-dogs.
Suor em Chicago
Quando falam do calor que o Hemisfério Norte pode sentir, não é brincadeira. Chicago 40°C é (quase) real.
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Quero receberFoi o que eu vi em julho, na minha segunda ida a Chicago (na primeira, também a trabalho, tava com a cabeça mergulhada na cerveja), de coração miudinho por problemas da vida, aqueles que passaporte não cura.
O calor era tamanho que os temporais de verão (que a gente conhece tão bem) melaram a Nascar, principal motivo para esta ida dos jornalistas pelo Choose Chicago.
Diante de uma frustração de não ver a primeira corrida de rua da cidade, o Bloody Mary cairia como uma luva em versão ousada e surpreendentemente leve, quem diria.
Tequila, suco de tomate e limão clarificado em milk punch ('leite pra fazer drinque?''. Espanto de metade da mesa, e provavelmente de 99% do público), um mix de temperos e pimentas.
Esse é o "Bloody Mary" do Sepia (que manteve sua estrela Michelin dia desses e é uma das minhas recomendações mais queridas na 'Windy City').
O bartender Keith Meicher explicou uma, duas, três vezes a técnica e o nome - o drinque foi batizado de Bannicula, um coelho-vampiro e personagem de livro infantil favorito de Keith.
Mas o que me deixou emocionada (e meio obcecada) foi mesmo perceber que o Bloody Mary clarificado fez sucesso até para quem torcia o nariz. O segredo estava no corpo?
A mesa pediu mais e pronto: já sabia o que levar para casa quando escutasse um "ah, suco de tomate. Que nojo".
Lágrimas em São Paulo
Como inferno astral pouco é bobagem, um dia antes do meu aniversário, uma mudança brusca de ares. E foi nesse miolo entre Paris-Chicago-São Paulo que eu esqueci completamente de escrever sobre Bloody Mary nesse vai-não-vai da coluna (agora foi!).
Eis que aos 45 do segundo tempo, numa absurda coincidência, um dos nomes da coquetelaria com quem mais simpatizei nos últimos tempos desenrola um Bloody Mary também clarificado, diferente do de Chicago e especialíssimo para o TUJU (que eu já contei a parte etílica apaixonante aqui na coluna).
Rachel Louise, a minha alquimista favorita desde maio (porque o ano foi também de coisas ótimas), me deu todos os detalhes dessa maravilha:
O suco de tomate momotaro (doce e suculento) é clarificado por descongelamento. "Batemos ele puro na Thermomix, sem água nem tempero. Depois congelamos e descongelamos filtrando a água, que fica translúcida". Feito isso, o preparo do Bloody envolve a adição de vodca e tempero e o resultado final se mantém translúcido. "A gente finaliza com flor de sal sobre o gelo".
Delira, nerd de coquetelaria.
Ironicamente, para coroar o ano, o nome do drinque no TUJU é "Chorona". A conclusão perfeita para o ano imperfeito.
Fim de tango (pan, pan)
Em mais uma reviravolta da vida, pinguei em Buenos Aires e Mendoza e Londres, mas isso são outras colunas, outros papos. Parece que os Bloodys me deram é muita sorte e uma gigantesca esperança de que "só melhora".
Que em 2024, só sentem na sua mesa, leitor, os amores reais, os amigos de verdade, gente por quem você torce e que torce por você. E que tenha Bloody Mary em todas as suas versões, criações e pirações.
E não vamos parar com "Roda Viva" do começo. Vai de "Emoções", de Roberto Carlos.
Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi.
Quem quiser bater um papinho, sou a @sigaocopo no Instagram.
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