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Fé alternativa que une egípcios, Iemanjá, Cristo e ETs é a cara do Brasil
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15º40'S, 47º39'O
Pirâmide da Estrela Candente
Vale do Amanhecer, Planaltina, Distrito Federal
Brasília é um sonho antigo. No século 18, Portugal já tinha planos para transferir a capital brasileira para o interior. Em 1892, já uma república independente, o Brasil começou a tirar a ideia do papel. A Comissão Exploradora do Planalto Central, que ficaria conhecida pelo sobrenome de seu líder, o geógrafo belga Louis Ferdinand Cruls, era um time de 21 pessoas de diversas áreas (botânicos, engenheiros, geógrafos, geólogos, médicos, naturalistas?) que mapeou uma área de 14.400 km² no Planalto Central que se mostrou ideal para a implementação da futura capital.
A construção de Brasília só começaria em 1956. Brasil, sabe como é. Nesse meio-tempo, em 1922, a pedra fundamental da obra foi lançada em Planaltina, uma vila habitada desde o tempo dos caçadores de esmeraldas, no século 18.
Com o início das obras, tudo mudou na região. A criação do Distrito Federal dividiu Planaltina em duas partes, o município goiano de Planaltina e a região administrativa do DF também chamada Planaltina.
Mais importante que a nova configuração territorial foi a nova configuração humana, com milhares de trabalhadores vindos de outras regiões para erguer o sonho modernista — e dar novos ares, cores e sotaques à região. Planaltina, cidade colonial, católica, com uma tradicional festa do Divino Espírito Santo, simbolizaria essa mudança.
No começo dos anos 1960, já com Brasília inaugurada e convertida em capital federal, Neiva Chaves Zelaya, uma caminhoneira e clarividente que se estabelecera em Planaltina naquela época de trabalho e transformação, criou na cidade um mundo imaginário complexo, materializado por parentes, amigos e colegas, candangos como ela.
Guiada pelo Pai Seta Branca, um espírito emissário, Neiva fundou, em Planaltina, o Vale do Amanhecer, nova doutrina que, como poucas, demonstra a "capacidade antropofágica do Brasil de misturar diversas fontes para criar algo novo", nas palavras de Kelly Hayes, especialista em estudos da religião na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.
O Vale do Amanhecer tem elementos cristãos, hindus e judaicos, além de certa inspiração nos incas e antigos egípcios. A sede inclui uma pirâmide e um templo com o formato de espaçonave. Os seguidores acreditam que alienígenas pousaram na Terra 32 mil anos atrás para dar o pontapé inicial do desenvolvimento das civilizações. Eles retornaram ao planeta em diversas ocasiões, encarnando em épocas e culturas variadas até chegar à geração atual, os próprios membros do Vale.
"Quando Tia Neiva foi preparada na Alta Magia, foi levada por Humarrã ao Oráculo de Simiromba e ali recebeu o direito de trazer a Estrela Candente e de formar os Trinos, que seriam os representantes das nossas Raízes. O conjunto da Estrela Candente simboliza a grande jornada das forças civilizatórias que envolvem o período da História que precedeu nossa Era, atravessando os grandes eventos históricos - Espartanos, Macedônicos, Egípcios e a Era Crística na sua plenitude da vida de Jesus - e chega até nossos tempos. Mãe Yara, Mãe Yemanjá e as Princesas do Adjunto de Jurema ali estão representadas para facilitar a ligação mental entre as várias épocas. No conjunto se inclui a Pirâmide, para obtenção das energias acumuladas nessa época e nessa região do planeta."
No livro Handbook of UFO Religions ("manual das religiões de óvnis", sem edição no Brasil), Hayes conta que visitantes de primeira viagem "relatam uma sensação de sobrecarga sensorial induzida pela profusão de referências simbólicas, vestes suntuosas, rituais teatrais e arquitetura colorida em exposição".
"Apesar da complexidade, o Vale do Amanhecer se tornou uma das maiores religiões alternativas do Brasil, com templos afiliados em todos os estados brasileiros, bem como nos Estados Unidos, Inglaterra, Portugal e outros locais", segue Hayes. Itália, Japão, Uruguai, Bolívia e outros países aumentam a lista. Números? Uns 600 templos e 800 mil fiéis globalmente, segundo Hayes. No complexo do Vale, a Cidade do Amanhecer, a 50 km de Brasília, tem cerca de 40 mil habitantes.
Tia Neiva, ao lado de Mário Sassi, um de seus primeiros seguidores e que se tornou intérprete de suas visões e "arquiteto intelectual da teologia do movimento, canibalizou [no sentido da antropofagia cultural de Oswald de Andrade] vários movimentos religiosos que existiam no Brasil na segunda metade do século 20, reconfigurou-os em um quadro cosmológico fundado no espiritismo, na metafísica teosófica e em filosofias extraterrestres", descreve Hayes, que explica que o Vale "reinterpreta figuras familiares do Brasil como protagonistas em um grande drama da Era Espacial".
Planaltina hoje tem mais de 160 mil habitantes. No papel, 61% deles são católicos, e já faz tempo que a cidade é um caldeirão cultural. Há centros de umbanda e igrejas evangélicas, que se expandiram nos últimos anos. A Folia do Divino Espírito Santo continua popular, com a distribuição de 10 mil refeições.
Mas onde o entendimento não chega, o preconceito se espraia. Muitos veem o Vale do Amanhecer, que se define como uma doutrina espiritualista cristã, como uma seita. Há evangélicos que creem que os membros estão possuídos por demônios e lutam pela sua conversão (diversas igrejas surgiram no entorno da comunidade, inclusive). A cidadezinha que mudou de ares com a chegada de Brasília agora é um retrato do Brasil.
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