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1º país negro das Américas, República Dominicana luta para resgatar origens
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18º28'N, 69º53'O
Ruínas do Hospital San Nicolás de Bari
Cidade Colonial, Santo Domingo, República Dominicana
A América que começou a se formar a partir do fim do século 15 teve na Ilha Hispaniola seu epicentro. Foi nela que a esquadra de Cristóvão Colombo chegou em 12 de outubro de 1492, tocando o terror, gritando como se fosse 1999: "Eu sou a Niña, a Pinta, a Santa María, o laço, o estuprador e o capataz."
Por causa disso, a ilha, hoje dividida em dois países (a oeste o Haiti e, a leste, a República Dominicana) estabeleceu uma série de marcos históricos que se repetiriam no continente. Colombo se prontificou a estabelecer uma colônia na costa, explorando a mão de obra local dm busca de metais preciosos. Em duas décadas, cerca de 400 mil taínos foram escravizados e dizimados.
Depois, a cana-de-açúcar virou a menina dos olhos sedentos da coroa, e os espanhóis deram partida nos mais de 300 anos de tráfico atlântico de escravos para as Américas. Vinte e oito povos da África foram trazidos à força à ilha, que se tornou uma das mais importantes produtoras de açúcar entre 1570 e 1630.
Tamanha prosperidade começou em 1496, quando Bartolomeu Colombo, irmão do dito-cujo, fundou Santo Domingo. Décadas antes de Havana, Cartagena ou São Vicente, Santo Domingo surgiu como a mais antiga cidade fundada por europeus nas Américas — porém séculos, e até milênios, mais tarde que as verdadeiras primeiras cidades do continente, diga-se de passagem.
Por ser a cidade europeia mais antiga, a capital dominicana foi a primeira em uma porção de coisas no que diz respeito a equipamentos urbanos: o primeiro forte, a primeira catedral, convento, universidade, ruas pavimentadas etc.
Muito disso está conservado no hoje centro antigo, a Cidade Colonial, patrimônio cultural da humanidade segundo a Unesco e recentemente embelezada em um processo de renovação que investiu 100 milhões de dólares ao longo de três anos.
Mas, segundo críticos, a restauração manteve uma antiga sina local e não escutou os novos ventos que sopram com mais força desde a década passada. Isso porque a República Dominicana ainda seria um país que celebra demais sua herança europeia e lembra de menos a indígena e a africana.
Um exemplo são as ruínas do Hospital San Nicolás de Bari. Isso aí, adivinhou, o primeiro hospital das Américas.
A história oficial conta que a instituição foi construída entre 1503 e 1508 por ordem de Nicolás de Ovando, governador das Antilhas (Cristóvão Colombo fora removido do cargo por abuso de poder). Ovando chegou à ilha com 2.500 colonos. Entre eles estavam Francisco Pizarro, que mais tarde conquistaria o Império Inca, e Bartolomeu de Las Casas, que descreveu o patrão como "um cavaleiro prudentíssimo e digno de governar muita gente."
Certa vez, Ovando organizou um banquete e convidou os chefes taínos. Matou todos e escravizou o restante.
Não esperaram Las Casas molhar o bico? O que ele registrou foi que Ovando "é digno de governar muita gente, mas não índios, pois com seu governo inestimáveis danos a eles causou."
Desse jeito, podia até governar Westeros, mas a ele coube Hispaniola.
Quanto a Las Casas, esse frade dominicano entraria para a história por defender os indígenas, algo então pioneiro.
Ovando era essa espécie de estadista do século 16, que mata mas faz. É o responsável pela fundação do hospital, batizado em homenagem ao santo conhecido em português como Nicolau de Mira e que inspirou a figura do Papai Noel.
Só que Ovando não bolou o hospital do nada. Faltam elementos à história.
O primeiro país negro das Américas
Um manuscrito da época mostra o arcebispo de Santo Domingo ligando a fundação do hospital à presença de uma "piedosa mulher negra que abrigava todos os pobres que podia e os curava na medida das possibilidades" (disponível digitalizado aqui, graças ao projeto First Blacks, sobre a presença africana na República Dominicana).
Não se sabe nada dessa pessoa. Mulher, negra, escravizada, ignorada completamente nos registros.
Guias engajados em resgatar essas personagens esquecidas a chamam de "Micaela, a negra do hospital", segundo a BBC. É uma tentativa de humanizar essa "heroína afro-dominicana". A luta agora é para que haja placas e documentos, acessíveis aos turistas, evidenciando o outro lado da história do primeiro país negro das Américas.
Empresas de turismo, com apoio da Universidade de Santo Domingo, organizam roteiros focados em lugares e pessoas apagados. Um deles é o engenho Boca de Nigua, onde, em 1796, 200 escravizados organizaram uma das maiores rebeliões da história da ilha. A grande inspiração deles veio do vizinho: cinco anos antes, a Revolução Haitiana levou à independência e ao fim da escravidão no país.
Apesar da importância histórica, hoje em Boca de Nigua há somente ruínas. Nada de placas, um centro de informações ou qualquer tentativa de contexto.
Sem o esforço de guias, sem o acesso a pesquisas e documentos históricos, ruínas perdem a magia. Impossível tentar visualizar o que se passou ali. O cenário diante dos olhos é reduzido a pouco mais que entulho. O silenciamento mata a história.
Muito antes do Haiti e de Boca de Nigua, um engenho de propriedade de Diego Colombo, filho mais velho do homem, assistiu à primeira rebelião escrava das Américas. Também em Nigua, o evento ocorreu no Natal de 1521. Os cativos tomaram as ruas, mataram colonizadores e foram duramente castigados. No ano seguinte, os espanhóis criaram leis para punir e combater insurreições (de novo, as primeiras do tipo). Uma série de eventos, acadêmicos e turísticos, está marcada para ocorrer nos próximos meses em memória dos 500 anos do episódio.
Diego acabou substituindo Ovando no comando da colônia. O palacete onde ele residia é, hoje, outro grande ponto turístico de Santo Domingo. Já o hospital sofreu ataques piratas e sucumbiu ao tempo, com um empurrão de terremotos. No começo do século 20, boa parte da estrutura foi demolida, a fim de evitar um colapso.
Agora, a República Dominicana quer evitar outro desastre, o do esquecimento.
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