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Mitologia de Tonga já previa devastação causada por tsunami

Imagens de satélite mostram o vulcão Hunga Tonga-Hunga Ha"apai antes da erupção que causaria tsunami em Tonga - Maxar via Getty Images
Imagens de satélite mostram o vulcão Hunga Tonga-Hunga Ha'apai antes da erupção que causaria tsunami em Tonga Imagem: Maxar via Getty Images

Colunista do UOL

23/01/2022 04h00

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20º32'S, 175º22'O
Hunga Tonga-Hunga Ha'apai
Ha'apai, Tonga

As notícias relacionadas à erupção vulcânica seguida de tsunami que atingiu Tonga recentemente chegaram a um ritmo a que não estávamos mais acostumados no século 21. O país polinésio, naturalmente isolado por ser uma das nações-arquipélagos da Oceania, ficou ainda mais distante do resto do mundo, porque o desastre derrubou as linhas de internet e de telefone.

A erupção começou em dezembro, até que discreta. Aí, em meados de janeiro, as colunas de fumaça ganharam o céu, que foi riscado por incontáveis relâmpagos. "Incontáveis" é palavra de preguiçoso. Chris Vagasky, meteorologista especializado no assunto, disse à "National Geographic" que chegou a contabilizar 6 mil raios por minuto.

Depois veio a explosão cataclísmica, ouvida na Nova Zelândia, distante 2 mil quilômetros, e que gerou ondas de choque que foram sentidas em observatórios até no Reino Unido, literalmente do outro lado do mundo. Em seguida, o tsunami. Ele atingiu com força Tongatapu, principal ilha do país e onde fica a capital, Nukualofa, e chegou à América, do Alasca ao Chile.

Então, as informações foram chegando aos poucos. Pescadores mortos no Peru, que teria demorado para emitir alerta de maremoto, matas cobertas de cinzas e desabamentos em Tongatapu, destruição de todas as casas da ilha de Mango, aeroporto inacessível e, dias depois, o primeiro registro de mortes ocorridas no país.

A queda da internet não é uma questão simples de ligar para a operadora, ser atendido por um robô, tirar o modem da tomada e xingar o serviço. Tonga, assim como outros países insulares do Pacífico, é conectado por um único cabo submarino de fibra óptica, que foi danificado pela erupção.

O "técnico" já foi chamado para resolver. No caso, um navio que saiu de Papua Nova Guiné, a oito dias de distância, e que terá a árdua missão de recuperar as seções rompidas do cabo no fundo do oceano e fazer as emendas necessárias, segundo o "New York Times".

Tudo isso sob a pressão nada discreta de um vulcão baforando cinzas e lava nas suas costas. É basicamente uma versão "guerreiros do cotidiano" do filme "Guerra ao Terror".

No marco zero da catástrofe, imagens aéreas da ilha vulcânica que entrou em erupção mostraram que boa parte dela foi destruída, possivelmente dividindo-se em porções menores. O governo declarou que o desastre foi "sem precedentes".

Mas Tonga está familiarizado com a fúria vulcânica, especialmente no local da explosão. Quem nos ensina é a mitologia polinésia.

O Reino de Tonga

Nuku'alofa, em Tonga - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Nuku'alofa, em Tonga
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Tonga hoje é um arquipélago de 170 ilhas, sendo que seus 105 mil habitantes ocupam 40 delas (e um quarto deles concentra-se na capital). Trata-se de uma nação muito antiga, que começou há 3 mil anos com os lapita, povo que ocupou uma série de arquipélagos no Pacífico.

A partir do século 10, uma linhagem de reis e rainhas, os Tu'i Tonga, governou o país. O contato com os europeus começou no século 17, especialmente após a chegada de James Cook, em 1773, iniciando uma longa relação com os britânicos. Como é de se imaginar, Tonga acabou virando protetorado do Reino Unido, em 1905. A independência foi recuperada em 1970.

Dança típica de Tonga - Getty Images - Getty Images
Dança típica de Tonga
Imagem: Getty Images

Essas ilhas têm origem nobre, segundo a mitologia. Tongatapu, por exemplo, foi uma das primeiras ilhas a ser elevadas do fundo do mar até a superfície por Maui, o grande herói das narrativas polinésias.

Já Hunga Tonga e Hunga Ha'apai foram atiradas do céu. Os tonganeses se referiam a elas como "as ilhas que pulam para frente e para trás". Um jeito poético de dizer que lá tem terremoto aos montes.

Acredita-se que a última grande erupção ocorreu quase mil anos atrás. Muitas outras menores se seguiram.

Ou seja, a natureza dessas ilhas gêmeas e desabitadas já era tão conhecida que a mitologia lhes reservou um papel específico. Isso porque Tonga fica em um braço do chamado Anel de Fogo do Pacífico, uma das regiões mais propensas a erupções vulcânicas e terremotos do planeta.

Novas ilhas

As ilhas chamaram atenção da comunidade científica em dezembro de 2014, quando outra erupção acabou unindo as duas porções de terra. Na falta de um novo nome, passou a ser Hunga Tonga-Hunga Ha'apai. Os locais preferiram encurtar, aí ficou só Hunga Tonga, como se a primeira tivesse absorvido a segunda.

Localização de Hunga Tonga-Hunga Ha'apai - Edwina Pickles/The Sydney Morning Herald/Fairfax Media via Getty Images via Getty Images - Edwina Pickles/The Sydney Morning Herald/Fairfax Media via Getty Images via Getty Images
Localização de Hunga Tonga-Hunga Ha'apai
Imagem: Edwina Pickles/The Sydney Morning Herald/Fairfax Media via Getty Images via Getty Images

Poderia ser mais uma de tantas ilhas que surgem de erupções só para morrerem pouco depois. Mas foi um dos poucos casos recentes em que a nova ilha vingou (o exemplo mais famoso é Surtsey, na Islândia, da qual já falei aqui na coluna.

"Em sua fase inicial, ilhas vulcânicas não apenas emergem", explica o geógrafo britânico Alastair Bonnett no livro "The Age of Islands" ("A era das ilhas", sem edição brasileira).

Elas se contorcem. Costas e encostas se contraem e se flexionam a cada semana que passa. Existe uma luta terrível para nascer que é acompanhada por berros e estrondos subterrâneos."

Bonnett visitou Hunga Tonga pouco após o evento que a fez aglutinar a irmã Hunga Ha'apai. Em pouco tempo a flora e a fauna já ocupavam seus espaços. Árvores, gramíneas, milhares de aves. Um milagre desabrochando diante de seus olhos. Relva e ninhos no chão, gaivotas no céu azul.

Sem julgar, o geógrafo conta que não havia aquele cuidado reservado a Surtsey, onde não se podia plantar nada, dejetos humanos deveriam ser removidos e o acesso é permitido somente a cientistas. "Fezes humanas ou a plantação de coqueiros do Branko [guia que acompanhou Bonnett] são o menor dos problemas. Tonga fica em uma rota transpacífica de drogas, e me falaram que pacotes de cocaína e outros narcóticos regularmente sujam as praias dessas numerosas ilhas remotas."

Segundo o autor, o espetáculo da erupção de 2014-15 era visível tranquilamente da capital. "O jornal tonganês 'Matangi' noticiou uma série de maravilhas naturais: o mar ficou 'branco espumoso, chocolate e vermelho enquanto o sol brilhava através de um céu de champanhe'."

Um morador contou à publicação que a praia se cobriu com uma névoa marrom e a nuvem de cinzas formou anéis ao redor do sol. "Que o mar ficou vermelho foi relatado por múltiplas fontes mas permanece um enigma, embora se pense que isso foi causado por algas reagindo à maré alta", explica.

Meses após a visita de Bonnett, foi a vez da Nasa chegar a Hunga Tonga. Sua evolução serviu de modelo de estudo para a agência espacial estudar a atividade vulcânica em outros planetas. Este vídeo mostra um pouco:

A ampliação da superfície da ilha começou em 2009 (sim, com outra erupção). Hunga Tonga ganhou uns metros quadrados, mas ainda longe de chegar a Hunga Ha'apai. A junção ocorreu em 2015 e boa parte disso foi destruída agora, em 2022.

Talvez Hunga Tonga-Hunga Ha'apai não repita a longevidade de Surtsey ou de Anak Krakatoa, ilha que surgiu em 1927 e que causou um tsunami em 2018 que matou cerca de 500 pessoas na Indonésia. As notícias ainda vão rolar.

As ilhas seguirão pulando para frente e para trás. Os antigos já sabiam.

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