Topo

Terra à vista!

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Após tragédia, Ouro Preto segue os passos de cidade inundada na África

Casarão abandonado do período da colonização francesa, Grand-Bassam, Costa do Marfim - Getty Images
Casarão abandonado do período da colonização francesa, Grand-Bassam, Costa do Marfim Imagem: Getty Images

Colunista de Nossa

30/01/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

5º13'N, 3º45'O
Cidade Histórica de Grand-Bassam
Grand-Bassam, Comoé, Costa do Marfim

Muito se falou que uma tragédia foi evitada em Ouro Preto no dia 13 de janeiro. Afinal, ninguém morreu quando dois edifícios foram engolidos pelo deslizamento do Morro da Forca naquela manhã. Sim, as imagens chocantes deram um alívio imediato quando soubemos que, graças ao trabalho do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil, ninguém sequer se feriu.

Ainda assim, foi uma tragédia.

O Solar Baeta Neves, a maior das construções que virou ruína em segundos aos olhos de todo mundo no zap, era do fim do século 19. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan), o terreno foi adquirido em 1890 pelos Baeta Neves, tradicional família de comerciantes da região.

Fachada do Casarão Baeta Neves - Reprodução/Google Street View - Reprodução/Google Street View
Fachada do Casarão Baeta Neves
Imagem: Reprodução/Google Street View

O casarão, com tetos trabalhados de madeira e pisos de marchetaria, foi construído às margens do Córrego do Funil, no local que mais se desenvolvia naqueles últimos anos em que Ouro Preto era a capital de Minas Gerais. Houve um trabalho de restauro entre 2009 e 2010 pelo programa Monumenta, parceria do Iphan com a prefeitura da cidade, ao custo de R$ 373,5 mil (cerca de R$ 735 mil em valores atualizados).

Infelizmente, o solar teve pouco uso desde então. Em 2012, precisou ser interditado por causa do perigo que o morro representava. Dez anos depois, veio abaixo. Sem nenhuma surpresa para quem acompanhava a situação.

O Ministério Público Federal pediu para o Iphan levantar o tamanho do estrago. A prefeitura deverá informar as causas do desmoronamento e as medidas tomadas para evitar danos.

A luta pelo centro histórico daquela que, por boa parte do século 18, foi a segunda maior cidade das Américas, começou em 1931, quando o prefeito João Velloso decretou a preservação das fachadas coloniais. Pouco depois Getúlio Vargas a elevou a monumento nacional. Em 1980, veio o grande reconhecimento, com o título de patrimônio cultural da humanidade.

Só que a própria Unesco informa que, apesar dos esforços para a preservação de Ouro Preto, os perigos são variados: "A cidade histórica é vulnerável ao crescimento urbano, tráfego, industrialização e impacto turístico. A expansão de Ouro Preto para as encostas do entorno, ocupando terrenos geologicamente instáveis, áreas verdes, áreas arqueológicas e espaços públicos, representa uma ameaça de danos irreversíveis ao cenário urbano".

A própria razão de ser da cidade explica o perigo constante. "Ocorrendo o ouro em regiões montanhosas, os arraiais nasciam ora junto aos regatos ora nas encostas", escreveu a historiadora Mary del Priore no capítulo dedicado à arquitetura colonial no volume 1 de "Histórias da Gente Brasileira" (Leya).

Paralelo africano

A tragédia de Ouro Preto me lembrou de outro patrimônio da Unesco seriamente ameaçado por chuvas, ocupação irregular e descaso político. Só que em um país significativamente mais pobre e subdesenvolvido que Minas Gerais: a Costa do Marfim.

Entre os dias 11 e 13 de outubro de 2019, fortes chuvas fizeram o rio Comoé e a laguna Ouladine transbordar e alagar boa parte da cidade histórica de Grand-Bassam. Cerca de 1.200 moradores precisaram ser retirados de suas casas.

As perdas materiais foram enormes, bem como as culturais. A abissa, uma celebração tradicional dos zemas, povo akan que habita Gana e Costa do Marfim, precisou ser adiada por causa das enchentes.

Os zemas habitam Grand-Bassam desde o século 15, quando a cidade começou a prosperar e virou um centro comercial. No século 19, os franceses se estabeleceram como colonizadores ao erguer um forte às margens do rio. A construção serviu de base para a exploração da África Ocidental e, em 1893, Grand-Bassam tornou-se capital do protetorado francês da Costa do Marfim.

Pouco depois, em 1899, uma catastrófica epidemia de febre amarela forçou a transferência da capital para Bingerville e, depois, Abidjan. Isso encapsulou Grand-Bassam como um exemplo bem acabado de núcleo urbano colonial da virada para o século 20, uma cidade de estilo europeu e evidentes raízes e influências africanas, com distritos voltados ao comércio e à administração pública, uma antiga vila de pescadores, jardins e casas com varandas. Um resultado da "complexa relação entre os dois continentes", segundo a Unesco.

Farol colonial (1914), da cidade histórica de Grand Bassam, na Costa do Marfim - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Farol colonial (1914), da cidade histórica de Grand Bassam, na Costa do Marfim
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Além disso, era um importante centro comercial da África Ocidental Francesa, federação que juntava no mesmo balaio as antigas colônias da França na região. Grand-Bassam atraiu, dos anos 1880 aos 1950, gente de diversos cantos do continente, além da Europa e do Oriente Médio.

A erosão costeira é um problema cada vez maior na África Ocidental, especialmente na Costa do Marfim. Um levantamento do Banco Mundial diz que o país já perdeu US$ 2 bilhões em problemas causados pelo aquecimento global e a elevação dos níveis de água. Como lembrou um artigo no site Quartz, isso é quase 5% do PIB do país.

A prefeitura de Grand-Bassam disse à época à imprensa francesa que o governo havia prometido construir um canal ligando a bacia do Comoé ao Atlântico, diminuindo a sobrecarga na laguna e, consequentemente, a frequências das enchentes. Mas? Adivinha. As obras jamais começaram.

As cheias também trouxeram mosquitos e suas doenças. As mesmas que dizimaram boa parte dos franceses há mais de 120 anos.

A Unesco enviou uma missão de emergência para avaliar os estragos de 2019. Mas a cidade ainda não consta na lista de patrimônios ameaçados.

Do lado de cá do Atlântico, Ouro Preto, outra antiga capital que, em um dado período da história, foi um dinâmico centro comercial que atraiu povos diferentes, também não está oficialmente na famigerada lista.

Grand-Bassam, vizinha da antiga Costa da Mina — de onde saiu a maioria das pessoas escravizadas que ergueriam, com o trabalho na bateia, a fortuna das minas brasileiras e ajudariam a construir a cultura e a sociedade das Gerais —, sofre da mesma sina que Ouro Preto.

"A mais soberba e opulenta", escreveu Francisco Tavares de Brito sobre a então Vila Rica, em 1732. A febre do ouro ergueu na Serra do Espinhaço uma urbe com mais de 50 chafarizes decorados, um palácio grandioso, um casario barroco em cujas ruas circulava uma sociedade dinâmica, igrejas magníficas cheias de ornamentos e onde se ouvia música sacra e erudita.

Hoje, mais nacos dessa memória podem ser engolidos pela água e a terra. Em 7 de janeiro, parte de outro casarão histórico, já em péssimas condições, ruiu com a chuva.

São as mesmas ameaças que sofre a antiga cidade colonial marfinense. É cultura que vai água abaixo.

Ao comparar a grandeza de Vila Rica, Tavares de Brito a chamou de "uma Potosí de ouro". No auge, Potosí, na Bolívia, era a mina de prata que abasteceu o Império Espanhol a ponto de se tornar o maior complexo industrial do mundo no século 16.

Potosí, essa sim, está na lista de patrimônios da humanidade seriamente ameaçados. Mas essa história fica para outro dia.

Índice de lugares do Terra à Vista