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Como uma estátua de Darth Vader explica a crise entre Rússia e Ucrânia
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46º28'N, 30º40'L
Estátua de Darth Vader
Odessa, Odessa, Ucrânia
Após meses de tensão crescente, a Rússia enfim invadiu a Ucrânia no fim de fevereiro. O mundo assiste apreensivo, aguardando um desfecho. Pode ser uma longa guerra, custosa para ambos os lados. Pode, eventualmente, inspirar outras autocracias a tomar medidas semelhantes, de invadir um vizinho com fronteiras tumultuadas. A Ucrânia pode se tornar um fantoche de Putin.
Pode ser uma guerra curta e localizada, encerrando os apressados comentários de que se trata do conflito mais perigoso desde a Segunda Guerra. A ver.
O principal argumento usado pelos russos era o namoro entre a Ucrânia e a Otan, a aliança militar do Ocidente. Afinal de contas, ter um vizinho, e não um vizinho qualquer, atrelado a um símbolo poderoso de seu inimigo de Guerra Fria, seria demais para Moscou.
Um país complexo, essa Ucrânia. Em uma de suas principais cidades, há uma estátua em "homenagem" a Darth Vader, um dos maiores e melhores vilões da história do cinema. Não se trata de mero delírio nerd: a presença do lorde sith, comandante supremo da frota imperial, ajuda a explicar a relação da Ucrânia com o vizinho gigantesco.
Cabo de guerra
Desde a independência da extinta União Soviética, em 1991, a Ucrânia tem oscilado entre as esferas de influência russa e americana. Entre 2004 e 2005, a população tomou as ruas na Revolução Laranja, que culminou em um novo governo, pró-União Europeia, o que pavimentaria o desejo de entrar na Otan. Do outro lado, em 2000 Vladimir Putin começou a flertar com a Ucrânia a fim de levá-la para a Comunidade Econômica Eurasiática, um bloco econômico que uniu algumas ex-repúblicas soviéticas e foi extinto em 2015.
A onda laranja, como outras, não durou muito. Moscou exerceu sua força cortando o abastecimento de gás à Ucrânia, governos corruptos pró-Rússia se seguiram, e em 2014 o povo voltou para a rua em mais uma revolução. A repressão policial matou pessoas às dúzias, o primeiro-ministro fugiu para a Rússia e a crise se espalhou pelo país, que voltou a sonhar com uma vaguinha na UE e na Otan.
Na Crimeia, península com uma história particular, estratégica para a Rússia desde os tempos do império e anexada à Ucrânia soviética em 1954, o caldo entornou de vez. Manifestantes pró-Moscou tomaram prédios públicos, e Putin aproveitou o vácuo criado em Kiev para anexar o território.
Uma nova guerra começou no leste da Ucrânia. Separatistas das províncias de Donetsk e Lugansk estabeleceram "repúblicas populares", que só foram reconhecidas por Moscou em 2022. Esses candidatos improváveis a países viraram palco de atrocidades como campos de concentração e tortura e execuções sumárias.
A Guerra Civil do Leste da Ucrânia já deixou cerca de 13 mil mortos, fora os mais de 2 milhões de refugiados. É o maior conflito armado da atualidade na Europa. A violência nas regiões afetadas e a repressão russa têm colaborado para resgatar a identidade nacional ucraniana, o que é paradoxal, segundo um especialista consultado pela Al Jazeera, "porque alguns políticos russos afirmam que isso não existe". Para eles, a Ucrânia não é nada mais do que um pedaço da civilização russa.
Em 2015, o país enfim seguiu os passos de outros que estiveram sob o guarda-chuva de aço da URSS ao sancionar uma lei que bane símbolos da era soviética. A aprovação ficou longe de ser unânime. No leste, onde a influência russa é nítida na cultura e no idioma, choveram críticas. Mas até uma comissão ligada à UE afirmou que a lei não teve uma consulta popular e poderia ser danosa à liberdade de imprensa e de expressão. Em suma, segundo essa comissão, a nova lei pesava a mão, banindo até mesmo a existência de partidos comunistas, algo permitido em qualquer democracia.
Críticas à parte, a lei entrou em vigor, e agora era hora de remover todas as estátuas, efígies, bandeiras, bustos e o escambau ligados a Stalin e cia. Foi aí que o artista Alexander Milov resolveu transformar uma estátua de Lênin em Darth Vader.
O casaco do líder da Revolução Russa virou a capa do personagem. Seu punho cerrado passou a segurar o sabre de luz. A careca e a barbicha deram lugar ao capacete. E pronto, Anakin Skywalker agora está na zona portuária de Odessa, um local de muitos embates entre separatistas e apoiadores de Kiev. A Força estava presente: ou pelo menos um sinal de wi-fi, instalado por Milov.
O artista concebeu a obra com evidentes influências políticas, tanto as locais como as galácticas. No ano anterior, o Partido da Internet da Ucrânia teve um sujeito chamado Darth Vader candidato à prefeitura de Odessa (e outro xará candidato em Kiev). Nas eleições parlamentares, o partido lançou as candidaturas de cidadãos chamados Chewbacca, Padmé Amidala e Yoda. Tipo uma comic-con em que tudo acaba em pizza metaforicamente (e não literalmente, como costuma ser).
"Não. Eu sou seu pai"
O primeiro Estado russo foi fundado no século 9 pelos vikings que usavam as rotas fluviais que ligavam o Golfo da Finlândia ao Mar Negro. Sua capital era Kiev (Moscou só seria fundada mais de 200 anos depois).
Por alguns séculos, o Reino da Rússia, ou Rússia de Kiev, foi uma potência medieval, a matriz histórica das atuais Rússia, Ucrânia e Belarus. Até que os mongóis chegaram com o caos a partir do século 13 e ucranianos e russos seguiram caminhos separados, para depois se unirem novamente.
A própria Odessa exemplifica isso. Ela foi fundada por Catarina, a Grande em 1794 para ser a capital do sul, a pérola do Mar Negro, uma cosmopolita metrópole portuária do Império Russo. Hoje é a terceira maior cidade da Ucrânia.
É por isso que a Ucrânia é tão importante para a Rússia. Por isso e porque é um país de 44 milhões de habitantes, o segundo maior da Europa (atrás somente da própria Rússia) e dono de um complexo agrícola e industrial de respeito.
De 2014 para cá, muita coisa mudou. A Ucrânia tinha forças armadas desmoralizadas, com equipamentos defasados, enquanto os rebeldes recebiam mimos bem mais modernos dos russos. A economia sofreu um bocado com o fim das relações com a vizinha, até então seu maior parceiro comercial.
Agora, o país está mais forte militarmente, com armamento mais moderno e voluntários se alinhando para lutar. A pior parte da recessão da década passada parece ter ficado para trás.
Do outro lado, a popularidade de Putin, que chegou a estratosféricos 90% na época da invasão da Crimeia, evaporou com a crise econômica e sanitária causada pela pandemia. Reacender a treta com a Ucrânia seria uma cortina de fumaça para desviar a atenção dos problemas internos.
Quanto a Darth Vader, sua popularidade política voltou a estar em alta. Ele foi usado para caracterizar Ronald Reagan, presidente americano entre 1981 e 1989, e Dick Cheney, vice do Bush Filho de 2001 a 2009. Depois ficou meio esquecido.
Com os novos filmes, a partir de 2015, ele voltou. Primeiro em Odessa. Depois, em dezembro de 2020, em Bristol, no Reino Unido. Substituiu brevemente a estátua do traficante de escravos Edward Colston, derrubada na onda de manifestações antirracistas daquele ano.
Não era uma menção à toa: semanas antes, o fisiculturista, halterofilista e ator David Prowse, que interpretou Vader na trilogia clássica, tinha morrido. Prowse era um orgulhoso filho de Bristol.
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