Topo

Terra à vista!

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Clube "secreto" que surgiu para combater ameaça russa governaria o mundo

Colunista de Nossa

27/02/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

51º59'N, 5º49'L
Hotel de Bilderberg
Oosterbeek, Guéldria, Países Baixos

Era 1954, Guerra Fria comendo solta, e algumas lideranças da Europa temiam o sentimento antiamericano que se espraiava pelo Velho Mundo. Então, o ativista político polonês Józef Retinger, uma das grandes vozes em prol da unificação europeia, decidiu se mexer.

Ele abordou o príncipe consorte holandês, Bernardo de Lipa-Biesterfeld, que ligou para o chefão da CIA na época, Walter Bedell Smith, para pedir uma indicação de quem os Estados Unidos poderiam enviar para a conversa. Paralelamente, o ex-primeiro-ministro belga Paul van Zeeland e o então presidente da Unilever, Paul Rijkens, abraçaram a ideia.

O grupo começou a montar uma lista de convidados para representar países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Eles deveriam trazer à mesa seus pensamentos, liberais ou conservadores, a fim de discutir os desafios frente à ameaça soviética.

Os cerca de 50 delegados se reuniram em um hotel isolado, próximo à cidade de Arnhem e do Parque Nacional De Hoge Veluwe, nos Países Baixos. Além da Unilever, outras empresas holandesas patrocinaram o evento, como Philips, Heineken e KLM. Ao longo de três dias, debateram assuntos como comunismo, colônias e territórios ultramarinos, políticas econômicas e a integração e defesa europeias.

Os organizadores ficaram tão satisfeitos que decidiram repetir a dose nos anos seguintes, sempre em um lugar diferente. Mas o grupo acabou ganhando o nome do hotel que sediou a primeira edição, Bilderberg.

Desde então, os "bilderbergers" são alvo constante de teorias conspiratórias. Uma reunião secreta de políticos de relevância internacional, monarcas, barões da indústria e magnatas da mídia só pode ser uma coisa. São esses caras que governam o mundo há décadas. Ou não?

Gosto muito de histórias de hotéis, especialmente aqueles mais caídos, que já viveram tempos melhores. Não é o caso do Bilderberg. E esse episódio que lhe deu fama também não tem nada de uma história comum de hotel decadente.

Donos do mundo?

Nascer do sol em De Hoge Veluwe, Holanda - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Nascer do sol em De Hoge Veluwe, Holanda
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Bernardo comandou os encontros até 1976, quando foi afastado e substituído por um empresário francês. O príncipe estava mergulhado em um escândalo de corrupção envolvendo a fabricante de aviões americana Lockheed.

Já são 67 encontros na lista. O último foi em 2019, em Montreux, na Suíça. Aparentemente, o grupo é avesso a reuniões remotas: nada de videochamada em tempos pandêmicos, Zoom é classe média demais. Não se sabe quando será a próxima reunião.

O Bilderberg adaptou suas pautas ao longo das décadas, ou seja, não trata mais de União Soviética, mas do novo imperialismo russo de Putin, por exemplo. Os assuntos seguem a mesma linha ideológica desde o início, orbitando o livre mercado ocidental e seus interesses.

Há muita informação disponível no site oficial. São longas páginas de discussão na Wikipédia, recheadas de fontes confiáveis.

Então por que tem tanta teoria da conspiração? Porque não isso é como o Fórum Econômico Mundial, que tem ampla cobertura da imprensa e junta umas 3 mil pessoas, movimentando a rotina da pequenina Davos, nos Alpes suíços.

Os encontros do Bilderberg passam batido na mídia e envolvem muito menos gente. E não é qualquer gente.

A lista é enorme. A rainha Beatriz, filha do príncipe Bernardo, participou de diversas edições. Seu filho, o atual rei holandês, Guilherme, idem. Filipe da Bélgica e Haroldo da Noruega já fizeram check-in.

(amigo leitor, segui a grafia em português dessa turma de sangue azul para facilitar a leitura. Mas, se preferir, tome o suquinho de purismo: príncipe Bernhard; rainha Beatrix; reis Willem-Alexander, Philippe e Harald.)

Monarcas conhecidos até por quem não dá a mínima para a monarquia? Juan Carlos e Sofia, da Espanha, e os príncipes britânicos Philip e Charles também marcaram presença em algumas edições.

Entre políticos, há chanceleres, primeiros-ministros, governadores, prefeitos e ministros de mais de 20 países. Chama atenção o fato de que muitas figuras proeminentes participaram no início de suas carreiras, ou pelo menos antes de chegarem ao topo. Emmanuel Macron foi em 2014, três anos antes de se tornar presidente da França. Antônio Costa esteve lá sete anos antes de assumir o cargo de primeiro-ministro de Portugal.

Dos britânicos há alguns exemplos. Gordon Brown, em 1991, 16 anos antes de se mudar para Downing Street. Tony Blair em 1993, quatro anos antes. David Cameron em 2013, enquanto era primeiro-ministro. Margaret Thatcher esteve em pelo menos três ocasiões, uma delas também quando ocupava o cargo.

E os americanos? Bill Clinton foi em 1991, ainda um jovem governador do Arkansas. Hillary Clinton em 1997, quando era primeira-dama, bem antes de se tornar secretária de Estado. Ocupantes desse cargo sempre foram requisitados, aliás. Condoleezza Rice foi em 2008, John Kerry em 2012. Henry Kissinger era figurinha carimbada, praticamente um Ary Fontoura nas novelas da Globo.

A lista de figurões do capitalismo global incluía fundadores e CEOs de nomes como Airbus, Alcoa, Alphabet (holding do Google), BP (a antiga British Petroleum), Deutsche Bank, Electrolux, Facebook, IBM, LinkedIn, Nestlé, Nokia, Novartis, PayPal, Shell, Siemens e Telefónica. Jeff Bezos esteve em duas edições. Bill Gates, em uma.

Jornalistas influentes, editores-chefes e donos de conglomerados de mídia como "Le Figaro", "Le Monde", "La Stampa", "The Economist", "The Observer", "The Wall Street Journal", NBC e Bloomberg também assinaram a lista de presença. Não para cobrir, que isso é para meros repórteres, mas para participar e dar pitaco.

Com tanta gente de peso, é normal especular o tamanho da influência do Bilderberg nos rumos do mundo. Ainda mais quando reforçamos o fato de que alguns políticos se deram muito bem depois de suas experiências no grupo. Thatcher, Clinton, Blair, Macron? E ainda Angela Merkel, que esteve na edição de 2005, seis meses antes de assumir o cargo de chanceler alemã.

Teria o grupo, então, o poder de decidir os resultados das eleições dos maiores pilares da democracia ocidental? Eleitores americanos, alemães, franceses e britânicos, entre outros, estariam nas mãos desse punhado de trilhardários? E, por extensão, todo o resto do mundo?

"É inevitável e não importa", disse em 2005 à BBC News Étienne Davignon, então presidente dos "bilderbergers". "Sempre haverá gente que acredita em conspirações, mas as coisas acontecem de maneira muito mais incoerente."

Davignon seguiu a explanação. "Negócios influenciam a sociedade e a política influencia a sociedade. Isso é puro senso comum. Não é que os negócios contestam o direito de líderes democraticamente eleitos de liderar."

Declarar isso em 2005 talvez acalmasse ânimos. Mas nos nossos tempos de pós-verdade, em que tiozões de zap debatem a geopolítica da Terra Plana, a gente consegue ouvir aquele colega com PhD em constrangimento comentar: "é, mas ainda assim eles decidem o resultado da eleição. Voto auditável já!"

Curioso é que o Bilderberg atrai teorias conspiratórias à esquerda e à direita do espectro da paranoia. Jim Tucker, morto em 2013, era editor do "American Free Press", semanário que tem entre seus fundadores um supremacista branco antissemita e negacionista do Holocausto.

Tucker dedicou anos de sua carreira a expor as "reais intenções" do Bilderberg. Para ele, o grupo, uma força maligna, organiza guerras e elege e derruba líderes políticos. Simples assim.

Tucker era um exemplo da extrema-direita que vê no clube o plano de impor um governo mundial. De fato, o internacionalismo sempre fez parte, abertamente, da agenda do Bilderberg. De preferência o internacionalismo focado no Atlântico Norte, é claro. Gente que apoia a Organização Mundial do Comércio, a cooperação entre EUA e Europa Ocidental, a integração europeia. Logo, na contramão do nacionalismo estridente e isolacionista que alguns governos atuais defendem.

E a extrema-esquerda, o que pensa? Ora, os "bilderbergers" querem impor o capitalismo selvagem goela abaixo de todas as nações. Em 2010, ninguém menos que Fidel Castro dedicou dois dedos de prosa a respeito. No caso, um artigo que ocupou três das oito páginas do "Granma", jornal oficial do Partido Comunista de Cuba.

Castro havia lido um livro ("fantástico", afirmou) do lituano Daniel Estulin a respeito do Bilderberg. Estulin também dedica sua carreira a expor as "reais intenções" do grupo e, entre suas pérolas, estão afirmações como a que diz que bombas nucleares causaram os atentados do Onze de Setembro.

Para Castro, além da dominação política e econômica, eles querem impor sua agenda cultural. Ele era fascinado pelas teorias envolvendo o Bilderberg, segundo a tradicional publicação americana "The Monitor". Em seu artigo, Fidel afirmou que os intelectuais da Escola de Frankfurt trabalharam em conjunto com a família Rockefeller nos anos 1950 a fim de pavimentar o caminho para o rock controlar as massas e desviar a atenção de assuntos como direitos civis e injustiça social. Yeah.

Oquei, oquei, mas ainda assim o Bilderberg tem esse talento de alçar políticos ao topo do mundo. Davignon tinha a resposta pronta. Na mesma entrevista, ele disse que o comitê era um excelente caça-talentos, oras. "Não é um total acidente, mas também não é um prognóstico. Se eles chegam a certo lugar não é por causa do Bilderberg, mas por causa deles."

De novo, ouvimos o tiozão do zap. "Isso não explica nada."

E ele está certo, pelo menos até certo ponto. A natureza dessas reuniões é um terreno fértil para teorias conspiratórias, e das mais irresistíveis, aquelas que não dá para comprovar nenhuma versão da história. Dificílimo comprovar que eles definiriam que Macron deveria ser presidente da França? Demais. Difícil mostrar que eles não tiveram nadinha a ver com a eleição? Mais ainda.

Temos muitos dados dos encontros. Mas os espaços vazios entre elas você preenche de acordo com seu grau de ceticismo, imaginação e fervor por teorias do tipo.

O hotel

Hotel de Bilderberg - Michiel1972 - Michiel1972
Hotel de Bilderberg
Imagem: Michiel1972

Piras à parte, chega a impressionar a quantidade de informação disponível sobre uma organização que secretamente governaria o mundo e já saberia que estou escrevendo a respeito dela muito antes de eu enviar o texto a meus formidáveis editores. Em 2018, Thomas W. Gijswijt, especialista em política externa americana, publicou o livro "Informal Alliance", o primeiro baseado nos arquivos do próprio grupo. Ele dedica algumas páginas à primeira edição do encontro.

"O Bilderberg era um hotel de tamanho médio e gestão familiar, escolhido principalmente por sua localização remota e tranquila nas florestas do leste dos Países Baixos. Não era um hotel particularmente extravagante, cortinas velhas foram usadas como toalha de mesa na sala de reunião, mas a segurança era relativamente fácil de ser mantida, uma vez que só havia uma estrada de acesso. A proteção policial garantiu que nenhum visitante não convidado pudesse se intrometer, e o serviço secreto holandês investigou todos os funcionários do hotel. Aqueles que simpatizavam com o comunismo foram instruídos a ficar em casa."

Ainda segundo Gijswijt, o local tinha uma vantagem interessante para o teor do encontro. Como não havia nenhuma grande cidade no entorno (Arnhem não está nem entre as dez maiores do país), todos os participantes ficaram impelidos a se hospedar no hotel, o que criou uma atmosfera de confiança e camaradagem entre eles, não só nas reuniões como também ao compartilhar refeições e bebidas.

Willem Roelofs (1867): paisagem de Oosterbeek (província de Gelderland province) - Coleção de Johannes Warnardus Bilders - Coleção de Johannes Warnardus Bilders
Willem Roelofs (1867): paisagem de Oosterbeek (província de Gelderland province)
Imagem: Coleção de Johannes Warnardus Bilders

Isso contribuiu um bocado para o sucesso da empreitada. Ao elogiá-la ao príncipe Bernardo, o banqueiro americano David Rockefeller disse: "Nunca vi uma reunião que correu tão suavemente. E olha que eu já tive reuniões do tipo o suficiente para saber o quanto de planejamento isso requer".

Hoje, o Bilderberg não é mais um hotel familiar, mas uma rede espalhada pelo país, com uma unidade até na Alemanha. O endereço original, um edifício de 1926, preserva o clima tranquilo, cercado pelas vistas bucólicas de Oosterbeek, vila onde nasceu o impressionismo holandês. Uma beleza, isso sim, difícil de negar.

Índice de lugares do Terra à Vista