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OPINIÃO

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Ícone de Paris, Catedral de Notre-Dame e seu estilo gótico têm origem árabe

Qalb Loze, basílica da Síria - Bertramz/commons.wikimedia.org
Qalb Loze, basílica da Síria Imagem: Bertramz/commons.wikimedia.org

Colunista de Nossa

06/03/2022 04h00

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36º'10'N, 36º34'L
Igreja de Qalb Lozeh
Harem, Idlib, Síria

Notre-Dame segue em obras. A catedral recebeu uma montanha de dinheiro após o incêndio de 2019: foram 840 milhões de euros, ou R$ 4,8 bilhões na conversão atual. Mesmo com tamanha explosão de generosidade (o que gerou intermináveis debates na rede mundial dos futricos), a reinauguração está marcada só para 2024, quando os olhos do mundo estarão atentos na capital francesa, sede das próximas Olimpíadas de verão.

Então vai dar tempo para voltarmos à catedral algumas vezes. Hoje, vamos falar da pré-história não só de Notre-Dame, mas de todo o estilo gótico. Essa marca registrada da Idade Média europeia começou, na verdade, no Oriente Médio.

Igrejas góticas, um símbolo poderoso da cultura e da identidade francesas, devem muito de seu estilo a antigas igrejas e mesquitas na Síria e em outros cantos do atual mundo árabe. Pois é, os xenófobos choram.

Torres gêmeas com uma rosácea no meio, abóbadas nervuradas e arcos ogivais, características básicas da arquitetura gótica, são inovações que os cruzados trouxeram à Europa no século 12. Em suas incursões pelo Oriente Médio, eles conheceram mesquitas e antigas igrejas bizantinas e assimilaram muitas dessas novidades. Até as fórmulas para fazer vitral, talvez a mais emblemática inovação das igrejas góticas, têm origem na região.

Qalb Lozeh, hoje uma vila drusa (minoria religiosa árabe) no noroeste da Síria, preserva as ruínas daquela que é considerada uma das grandes inspirações do gótico. Erguida na década de 460 d.C., sua igreja é uma das mais bem preservadas do período. É a primeira em que as colunas que separam os corredores da nave principal, típicas da arquitetura bizantina, foram substituídas por pilares mais baixos e arcos mais altos, o que dá a sensação de espaço amplificado.

Ilustração de Qalb Loze, na Síria - Getty Images - Getty Images
Ilustração de Qalb Loze, na Síria
Imagem: Getty Images

Ela foi abandonada em algum momento entre os séculos 8º e 10º. Mais de mil anos depois, foi devidamente reconhecida.

No começo dos 1900, a exploradora e arqueóloga britânica Gertrude Bell descreveu Qalb Lozeh como o "início de um novo capítulo na arquitetura mundial". Em 2011, ela entrou no rol de patrimônios da Unesco, como parte de um conjunto de cerca de 40 vilas que são um "testemunho notável da vida rural na Antiguidade tardia e durante o período bizantino", segundo a inscrição.

"As aldeias, que datam dos séculos 1º a 7º, apresentam uma paisagem notavelmente bem preservada, com vestígios arquitetônicos de moradias, templos pagãos, igrejas, cisternas, casas de banho etc." A Unesco ainda destaca a região como uma importante transição do antigo mundo pagão do Império Romano para a cristandade bizantina.

Hoje Qalb Lozeh tem cerca de mil habitantes. Apesar de ficar próxima a Alepo, a vila não sofreu muito com os horrores da Guerra Civil Síria, com a exceção de um dia, em 2015, em que cerca de 20 drusos foram mortos por militantes da Frente Al-Nusra.

As ruínas da igreja resistiram, diferentemente de outros tesouros arqueológicos no país, que, apesar de agora esquecido pela imprensa, continua em guerra. Elas seguem de pé para contar essa história de como inovações arquitetônicas do Oriente Médio modelaram a paisagem europeia da Idade Média.

Da Síria a Paris

O termo "gótico" surgiu bem depois do estilo. Críticos renascentistas o adotaram para se referir a essas obras, que destoavam dos padrões clássicos greco-romanos. Erroneamente, eles atribuíam essa arte "inferior" aos godos, povo que se subdividiu em ostrogodos e visigodos e que conquistou, séculos antes, partes das penínsulas Itálica e Ibérica, respectivamente.

Para ser mais direto: para os renascentistas do século 16, "gótico" era o trabalho simplório dos mesmos bárbaros que destruíram a verdadeira arte clássica, aquela pela qual o saudoso Império Romano tanto prezava. Só que é um pouco mais complexo que isso.

Os homens e mulheres que viviam nos séculos 13 e 14 se referiam às catedrais góticas com outros termos: "opus modernum" ou "opus francigenum", explicam Horst de la Croix e Richard G. Tansey em "Art Through the Ages" ("Arte através dos tempos", sem edição brasileira, mas com muitos exemplares à venda nos sebos online da vida). Traduzindo do latim: "trabalho moderno" ou "trabalho francês". Desde o princípio, então, existe essa identificação do gótico com a França.

Essa arte francesa deve muito aos árabes e aos muçulmanos, defende a arabista britânica Diana Darke, autora de diversos livros sobre a cultura árabe, entre eles "Stealing from the Saracens" ("Roubando dos sarracenos", sem edição brasileira). O subtítulo da obra, de 2020, diz a que veio: "como a arquitetura islâmica moldou a Europa".

Arcos ogivais foram implementados em larga escala na arquitetura islâmica do Califado Abássida, a partir do século 8. A abóbada de cruzaria, também característica do gótico, começou para valer no Al-Andaluz, no século 10, quando a Espanha integrava a Era de Ouro Islâmica. A hoje Catedral de Nossa Senhora da Assunção, em Córdoba, é o exemplo mais antigo ainda de pé desse incrível exercício de geometria, nervuras simétricas criadas há um milênio, quando o templo foi erguido como uma mesquita.

Catedral de Nossa Senhora da Assunção, em Córdoba - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Catedral de Nossa Senhora da Assunção, em Córdoba
Imagem: Getty Images/iStockphoto

O califado era uma potência que, por volta de 850, dominava uma área que ia da Sicília ao Paquistão. No Cairo, os arcos das mesquitas se tornaram mais pontudos, tornando-se uma espécie de atração turística. Mercadores de Amalfi, então uma importante república cujo comércio marítimo rivalizava com Gênova e Pisa, ficaram encantados e decidiram importar a novidade.

Construída entre os séculos 9º e 10º, a Catedral de Amalfi foi reformada e redecorada algumas vezes ao longo do tempo, mas as influências árabes ainda podem ser vistas. É a cereja de um bolo com muitas cerejas, a Costa Amalfitana.

Catedral de Amalfi, na Itália - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Catedral de Amalfi, na Itália
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Em 1065, Desidério, abade de Monte Cassino, visitou Amalfi para comprar artigos raros. Voltou com mais que isso, pois voltou decidido a implementar as janelas pontiagudas que admirou na reconstrução do mosteiro que ele comandava. Desidério se tornaria o papa Vítor 3° 21 anos mais tarde. Já a abadia seria bombardeada na batalha de mesmo nome na Segunda Guerra Mundial.

Abadia de Cluny, na França, em gravura do século 15 - Michel Wolgemut, Wilhelm Pleydenwurff/commons.wikimedia.org - Michel Wolgemut, Wilhelm Pleydenwurff/commons.wikimedia.org
Abadia de Cluny, na França, em gravura do século 15
Imagem: Michel Wolgemut, Wilhelm Pleydenwurff/commons.wikimedia.org

Mas Monte Cassino teve tempo de sobra para influenciar a arquitetura da Europa. Sob Desidério, o mosteiro viveu o auge da fama. Outra instituição beneditina, a Abadia de Cluny, na França, que tinha a maior igreja do mundo à época, decidiu adotar as mesmas janelas.

Quem gostou da moda foi o abade Suger, conselheiro dos reis franceses Luís 6° e 7°. Regente do país quando Luís 6° estava na Segunda Cruzada, Suger abraçou a missão de construir um reino e uma expressão arquitetônica para esse reino, em um tempo em que a extensão do poder de fato do rei não ia muito além da capital.

Em 1122, eleito abade de Saint-Denis, Suger resolveu reconstruir a antiga igreja, onde os monarcas franceses eram enterrados desde o século 9º, adotando muitas das inovações que via em suas viagens. A Basílica de Saint-Denis, nos arredores de Paris, é considerada hoje o berço da arquitetura gótica.

Catedral de St. Denis, em Paris, na França - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Catedral de St. Denis, em Paris, na França
Imagem: Getty Images/iStockphoto

É claro que o arco ogival, a abóbada de cruzaria e outros elementos evoluíram ao longo de todos esses séculos. Não só antes como, especialmente, depois de Saint-Denis.

"A evolução da arquitetura gótica é um contínuo ajuste de escala, proporção, contrafortes, ajuste de abóbadas e desenho de paredes e fachadas", explicam De la Croix e Tansey. "Só o coro de Saint-Denis ficou pronto no século 12." Uma visão completa do gótico inicial da segunda metade do século, indicam os autores, é a Catedral de Laon, que, ainda assim, combina elementos românicos com as novidades góticas.

Catedral de Laon, na França - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Catedral de Laon, na França
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Poucos anos após Laon, a construção de outro templo começou, misturando ideias conservadoras e progressistas. "Os construtores, em sua fraternidade de arquitetos, se mudavam de um lugar para outro conforme a demanda", escreveu Darke. "Assim, o arquiteto envolvido em Saint-Denis foi trabalhar na Notre-Dame."

Notre-Dame de Paris, na França - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Notre-Dame de Paris, na França
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Os caminhos da arte

É uma história de referências que se cruzam, evoluem e geram novas ideias. É assim, e sempre foi, que a arte anda. O blues é essencialmente americano mas ele tem raízes no islamismo africano. Artes africanas influenciaram o cubismo e o expressionismo europeus.

Louis Armstrong, monstro sagrado da "grande arte americana", o jazz (estilo que surgiu entre as comunidades afro-americanas de Nova Orleans), fez a viagem de volta e, em uma turnê histórica por Gana em 1956, ajudou a dar forma à música contemporânea do país africano.

O reggae como o conhecemos surgiu mais ou menos na mesma época em que a Jamaica conquistou a independência dos ingleses, e nos anos 1970 influenciou tremendamente a cultura da antiga metrópole. A geografia da arte é fascinante. Eu acho, pelo menos.

As origens árabes do gótico não são novidade alguma, lembrou Darke ao "The Guardian". No livro, ela cita o arquiteto britânico Christopher Wren, que escreveu, no século 18, "que todas as marcas dessa arquitetura só podem ser atribuídas aos mouros ou, o que é a mesma coisa, os árabes ou sarracenos".

"Sarracenos", não à toa o mesmo termo usado no título do livro de Darke, era como os europeus se referiam aos muçulmanos árabes na Idade Média. Uma possível origem seria a palavra árabe "sariq", que quer dizer "ladrão".

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