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Ainda sob ditadura, a Espanha deu forma e beleza aos filmes de faroeste

Cenário de filme western na Andaluzia, Espanha - Getty Images
Cenário de filme western na Andaluzia, Espanha Imagem: Getty Images

Colunista de Nossa

27/03/2022 04h00

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37º02'N, 2º25'O
Fort Bravo, Tabernas
Almería, Andaluzia, Espanha

O faroeste "Ataque dos Cães" acumulou prêmios e oba-oba nesta temporada. Só ao Oscar são 12 indicações, incluindo os de melhor filme, direção e fotografia.

A história se passa nas serras de Montana, só que as belas e áridas paisagens que vemos não ficam no estado americano, mas na Nova Zelândia. Não é nenhuma novidade.

Locações de filmes representam, muitas vezes, outros lugares. Isso ocorre por motivos de logística, incentivos fiscais, custo de mão de obra local e, às vezes, um certo desapego à exatidão geográfica. Se pegarmos apenas os melhores filmes da nova onda de faroestes das últimas décadas, a lista é significativa.

"Brokeback Mountain" (2005) se passa em Wyoming, mas foi gravado em Alberta, no Canadá. "O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford" (2007) acontece no Missouri, mas também foi feito em diversas regiões de Alberta. As deslumbrantes paisagens de "O Regresso" (2015) contam uma história que se passou na Dakota do Sul, mas muito do que vemos fica, na verdade, no Canadá e na porção argentina da Terra do Fogo.

Em meados do século passado, não era o Canadá o destino preferido para gravar filmes de velho-oeste. Muito menos a Nova Zelândia, que entrou nesse mapa para valer na virada do milênio, com as paisagens embasbacantes da Terra Média de "O Senhor dos Anéis".

Sessenta anos atrás, o país que fazia a cabeça desses cineastas era uma ditadura isolada da Europa. A Espanha.

Cidade cenográfica de filme western em Almeria, Espanha - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Cidade cenográfica de filme western em Almeria, Espanha
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Na década de 1960, a Espanha era bem diferente. Um país com poucos laços com o restante do continente, empobrecido e governado pelo ditador Francisco Franco.

Almería, província da Andaluzia, no sudeste espanhol, era uma das regiões mais pobres. Um lugar marcado pelo desemprego e pelo êxodo rural.

A ajuda econômica e militar dos Estados Unidos melhorou um pouco a situação do país, e a descoberta da província por diretores e produtores de cinema foi uma mão na roda. Na época, cineastas italianos estavam em uma de recriar e subverter antigas histórias de faroeste, um gênero praticamente abandonado e fora de moda em Hollywood.

Na primeira metade do século 20 esses filmes eram, em geral, histórias maniqueístas de mocinhos e bandidos, praticamente fábulas da mitologia americana sobre como o homem branco conquistou o oeste. Agora eles eram sujeitos corrompidos, vingativos, muitas vezes sem moral, vagando por uma terra sem lei nem escrúpulos.

Desierto de Tabernas - Getty Images - Getty Images
Desierto de Tabernas
Imagem: Getty Images

O público vibrou. A crítica torceu o nariz, mas hoje se contorce em elogios. Esses cineastas italianos reinventaram um estilo americano, que se ramificou em um novo subgênero, o "spaghetti western".

Além de serem dirigidos por nomes que escancaram suas origens, como Sorbucci, Sollima, Petroni e Damiani, muitos desses filmes tinham outras coisas em comum. Apesar de contarem histórias que se passavam no Texas ou Montana ou Novo México ou um rincão isolado qualquer do outro lado do Atlântico, eles eram filmados em Almería.

Não era qualquer filme. Os melhores do gênero, clássicos do naipe de "Era uma Vez no Oeste" (1968) e "Três Homens em Conflito" (1966), foram gravados lá.

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Os cânions secos, as montanhas escarpadas, as planícies desérticas da Andaluzia moldaram o cenário perfeito para um desconhecido Clint Eastwood franzir a testa e olhar de esguelha sob a batuta de Sergio Leone. Ennio Morricone compôs a trilha sonora perfeita para filmes de diálogos curtos e certeiros, detalhes minimalistas em contextos rocambolescos que se mostraram excelentes aberturas de shows de rock (erguei as mãos, fãs de Ramones e de Metallica).

Graças a produções desse porte, a pequena Tabernas, com cerca de 3 mil habitantes e um dos mais de 100 municípios de Almería, é um dos lugares mais especiais da história do cinema. Sua cidade cenográfica abrigou as filmagens de "Por um Punhado de Dólares" (1964), o primeiro da trilogia dos dólares, de Leone.

Com o sucesso do longa, o primeiro que Clint Eastwood protagonizou, Tabernas ganhou mais duas cidades cenográficas. Gerações de moradores locais fizeram a vida em elencos de apoio ou como dublês, aplicando à arte a intimidade cotidiana que tinham com cavalos e a vida rural.

Paisagem da Andaluzia, na Espanha - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Paisagem da Andaluzia, na Espanha
Imagem: Getty Images/iStockphoto

A língua espanhola colaborava para pequenos papéis. Primeiro, porque em geral eram filmes de mais ação do que diálogo. Segundo, não menos importante, as produções, apesar de europeias, miravam o público americano. Então espanhóis faziam papel de mexicanos, tal qual Antonio Banderas hoje em dia — apesar dos nós na cabeça e das discussões sobre colonialismo e racismo que isso pode gerar.

Pelo menos 170 faroestes usaram as paisagens de Almería nos anos 1960 e 70. Os diretores italianos transformaram a região em um enclave fictício do oeste americano na Península Ibérica. Mas Tabernas não era território exclusivo deles.

Segundo a plataforma IMDb, há registros de 227 filmes rodados em Almería (outros levantamentos falam em mais de 500). Antes de Sergio Leone, David Lean, com "Lawrence da Arábia" (1962), e Joseph Mankiewicz, com "Cleópatra" (1963), usufruíram das locações de Almería. Isso para ficar apenas em clássicos populares até hoje.

"Nossas paisagens são muito convenientes. Temos mar, deserto, montanhas nevadas a curtas distâncias. Podemos servir como Texas, Novo México, Arizona, Califórnia e infindáveis cenários naturais", disse Plácido Martínez, um produtor local, à "National Geographic".

Tabernas fica a apenas meia hora da cidade de Almería. Com mão de obra barata e filmes bem-sucedidos, o dinheiro da indústria do cinema jorrou. A província ganhou mais ruas pavimentadas, hotéis, aeroporto. Franco ficou feliz em ver celebridades do porte de Frank Sinatra, Ava Gardner e John Wayne desfilando na Espanha. O ditador não ligava de facilitar a produção de filmes que depois seriam censurados no mesmo país que lhes serviu de cenário.

A onda dos faroestes macarrônicos acabou no fim da década de 1970, mas seguiu influenciando o gênero nas décadas seguintes. Tabernas, então, se especializou em destino turístico para fãs de cinema. As cidades cenográficas, como a Fort Bravo, viraram parques temáticos que abrigam espetáculos de duelos de armas, perseguições a cavalo e danças nos saloons. O pacote completo para quem quiser vivenciar a "experiência" dos filmes da época.

Centro da cidade de Almeria, na Espanha - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Centro da cidade de Almeria, na Espanha
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Almería seguiu servindo de cenário para produções importantes. "Indiana Jones e a Última Cruzada" (1989), "Conan, o Bárbaro" (1982) e "A História sem Fim" (1984) estão entre eles, além do terceiro filme da saga "Mad Max" (1985) e, mais recentemente, do sexto "Exterminador do Futuro" (2019) e das regiões mais áridas e solares do universo de "Game of Thrones".

A relação mais forte continua sendo com os faroestes, não tem jeito. Tabernas realiza um festival de cinema dedicado ao gênero (a edição 2022 está marcada para setembro e outubro). Os turistas que chegam de tudo que é canto para fazer selfies que certamente o Pistoleiro sem Nome reprovaria atestam essa vocação.

Daqui a um mês, a fim de mostrar quem nem só de cinema vive Almería, a região vai receber a maior concentração de Ferraris do mundo fora da Itália. O "Ferrari Western Tour" será uma homenagem ao legado de Sergio Leone e dos outros diretores italianos na região.

Tomara que o tempo esteja bom para a turma do motor. Há alguns dias, uma tempestade de areia no deserto levou dezenas de pessoas ao hospital com problemas respiratórios. Parecia cena de filme.

Anarquia distópica? Futuro apocalíptico? Faroeste caboclo? Pode escolher. Almería tem de tudo.

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