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Por que melhor arquiteto do mundo defende usar argila no lugar do concreto
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11º10'N, 4º17'O
Grande Mesquita de Bobo Dioulasso
Houet, Haut-Bassins, Burkina Faso
Conhecido e reverenciado entre arquitetos, Francis Kéré furou a bolha mês passado e virou notícia fora do meio ao se tornar o primeiro negro e o primeiro africano a ganhar o Pritzker, o prêmio máximo da arquitetura mundial. Kéré estudou, vive e trabalha em Berlim desde os anos 1980, mas jamais se esqueceu de seu país de origem, o Alto Volta. Na verdade, ele foi reconhecido por justamente aliar técnicas e materiais tradicionais a métodos contemporâneos.
Kéré se mudou para a Alemanha em uma década marcada por golpes militares em sua terra natal. Uma época tão tumultuada que o país até mudou de nome: desde 1984 se chama Burkina Faso. Sem acesso ao mar, árido e dependente de uma agricultura que muitas vezes não resiste a secas prolongadas, Burkina Faso tem um dos IDHs mais baixos do mundo.
Esse território colado ao Saara, cortado por afluentes do Rio Volta, tem uma história antiga. A atual capital, Uagadugu, uma metrópole de 2,4 milhões de habitantes, era sede do Império Mossi, potência regional que dominou a região por séculos. Tal realidade mudou com a chegada dos franceses, em 1896. Foram eles que deram o nome colonial de Alto Volta ao país.
Uma das principais características da arquitetura de Mossi eram as construções de argila. Na verdade, em toda a região do Sahel essa técnica prosperou. O exemplo mais famoso é Timbuktu, a formidável cidade no atual Mali que foi disputada por alguns reinos africanos ao longo de um milênio.
Mas Burkina Faso, além do Mali, também preserva belos edifícios do tipo. É o caso da Grande Mesquita de Bobo Dioulasso, a segunda maior cidade do país. Feita com argila e vigas de madeira no século 19, ela tem paredes de 1,80 m de grossura. É uma das mesquitas mais impressionantes do Sahel.
Do caos à argila
Por muito tempo a argila foi motivo de orgulho em Burkina Faso. Mas isso começou a mudar há algumas décadas. Ela passou a ser vista como sinal de pobreza e, na primeira oportunidade em que os bolsos ficavam um pouco mais folgados, as pessoas aderiam ao concreto para suas casas.
Kéré e outros proeminentes arquitetos burquinenses querem resgatar a argila. Por motivos culturais e históricos, sim. Mas também por razões práticas e ecológicas.
A paisagem de muitas cidades tem mudado do marrom das antigas construções para o cinza dos blocos de concreto. Há alguns motivos. Um deles é a visível impressão, nítida literalmente em todos os cantos da casa, de adotar um estilo de vida mais moderno.
Outro é que o concreto dá mais segurança, em tese. Ele é visto como um material mais elegante e limpo que argila, e há menos chances de cair na sua cabeça em uma noite de chuva intensa.
As mudanças climáticas não são nada boas para as construções tradicionais. Em 2020, as chuvas atingiram Uagadugu em cheio. Em um bairro pobre, cheio de casas de argila, a água penetrou nas paredes e derrotou o ancestral método de impermeabilização, feito com óleo e esterco de vaca. Cerca de 2 mil casas foram reduzidas a lama e ruínas. Treze pessoas morreram.
Foi um verão trágico, com chuvas pesadas que afetaram milhões de pessoas em dez países do Sahel, deixando pelo menos 200 mortos. Em 2021, o céu desabou de novo sobre Burkina Faso. Dezenas de prédios colapsaram, incluindo uma sala de aula cheia de crianças e um minarete da mesquita de Bobo Dioulasso. Ficou difícil para a argila.
Mas as mudanças climáticas também não são nada boas para o concreto. Burkina Faso é um dos países mais quentes do mundo, e abdicar da argila significa abrir mão de um isolante térmico de respeito. Todo mundo sabe que concreto, especialmente em paredes finas e simplórias, deixa o calor entrar rapidinho, mas não deixa sair. As pessoas podem até se sentir mais seguras em dias de chuva intensa, mas vão sentir muito mais calor o ano inteiro.
Tem mais: o concreto não é bom para as mudanças climáticas. A fabricação de cimento responde por 5% das emissões anuais de gás carbônico, só fica atrás de carvão, petróleo e gás. Fora que, em lugares quentes, quando se tem condições financeiras, casas de concreto clamam por um notório gastador de energia, o ar-condicionado.
Com as grossas paredes de argila, que mantêm o calor lá fora, a temperatura é tolerável. Kéré quis provar esse ponto em dois projetos que tocou, o do Instituto de Tecnologia de Burkina e o do Liceu Schorge. São obras vizinhas, em Koudougou, terceira maior cidade do país.
O colégio, concluído em 2016, foi feito de laterita, outro material antigo nas construções e semelhante à argila. O instituto, de 2020, é de argila mesmo, e ambos têm uma fachada de eucaliptos, que cria áreas sombreadas. Amplas janelas trazem luz e chaminés nas salas de aula expulsam o ar quente de dentro.
Os arquitetos piram, é bonito e inovador. Mas esses prédios vão além, porque seu objetivo é entregar qualidade de vida, a essência da arquitetura. Professores já afirmaram que as temperaturas amenas diminuíram brigas e problemas de saúde mental e melhoraram a concentração e, consequentemente, as notas dos alunos.
Levante a mão quem já torrou a cabeça em uma sala de aula sem ventilação, fazendo provas de fim de ano ou o vestibular que poderia mudar sua vida nas primeiras semanas de janeiro. Não é difícil entender a diferença que isso pode fazer no dia a dia de crianças e jovens.
Além disso, é uma questão de saúde pública. Segundo a "National Geographic", clínicas em diversas cidades perceberam um aumento de internações e de mortes relacionadas a calor intenso. Alguns médicos suspeitam que uma quantidade desproporcional dessas pessoas viviam em casas de concreto, mas não tinham condições de bancar um condicionador de ar.
Argila não é para qualquer um
Os argumentos são bons, mas há uma série de desafios para tornar o método tradicional atrativo novamente. O desmatamento engole mais de 240 mil hectares de florestas por ano, e a madeira é parte importante das construções em argila. A desertificação crescente está tornando o solo mais arenoso, o que o deixa menos propício para fazer tijolos. A argila está mais cara e pior do que antes.
É preciso manutenção constante também. Todos os anos, trabalhadores aplicam camadas de uma manteiga local nas paredes da mesquita de Bobo Dioulasso para repelir a chuva. Não fosse por isso, ela já poderia ter vindo abaixo com chuvas bem mais fracas que as dos últimos anos.
Além disso, dominar o material, ao menos para fazer construções acima da média e seguras, é para poucos. Clara Sawadogo é outra arquiteta que luta pelo resgate das técnicas tradicionais. Seu projeto mais recente é uma refrescante clínica com paredes de pedra e argila e um teto abobadado. Ela disse à "National" que 15 dos 25 pedreiros originais jogaram a toalha, desistiram da obra antes de concluí-la.
O modo vida urbano e individualista e o medo da violência jihadista, que se alastrou nos últimos anos e dividiu famílias (que costumavam construir juntas as casas de argila), também contribuíram para a popularização do concreto. É um longo debate entre novo e velho, tradição e modernidade, algo que pode não fazer sentido em boa parte do mundo, mas faz nesse pequeno país quente demais, pobre demais.
Apesar dos problemas recentes, a argila ainda é barata e confiável, defendem os ativistas. Enquanto vários materiais usados na fabricação de concreto são importados, muitas vilas burquinenses têm poços de onde jovens trabalhadores retiram barro e o comprimem em encaixes retangulares. Cada tijolo é vendido a cerca de R$ 0,30. Talvez por isso, em algumas cidades onde a tendência cinza do cimento parecia irrefreável, muitas pessoas voltam à noite para suas antigas casas, reconhecendo que elas são bem mais suportáveis nas madrugadas de calor baforento.
O retorno à argila, se um dia acontecer, será de maneira nova, levando as questões de segurança a sério. Kéré, Sawadogo e outros arquitetos têm estudado outras formas de proteger as construções, como marquises metálicas mais largas ou adicionando pequenas porções de cimento à fórmula de argila. Ou seja, não se trata de dar as costas à modernidade, mas de usá-la com inteligência em técnicas que gerações e gerações de pessoas dominaram e desenvolveram.
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