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Banho de água fria na cabeça de mulheres é tradição de Páscoa na Eslováquia
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49º02'N, 55º50'L
Museu da Vila Eslovaca
Martin, Zilina, Eslováquia
Reclamar dos preços inchados dos ovos de Páscoa é quase uma tradição brasileira. Não que seja exclusividade nossa. No Reino Unido, a excentricidade pascal rende novidades caras todo ano, como o ovo da superloja de departamentos Harrods (cerca de R$ 300) ou o da loja de luxo Fortnun & Mason, pintado a mão (uns R$ 600).
Na Eslováquia, especialmente em pequenas cidades e vilas, o foco de tensão, se é que se pode chamar assim, é outro, e bem mais antigo. Lá, meninas e jovens mulheres estão sujeitas a banhos inesperados de água gelada no meio da rua (ou até dentro de casa).
Nesse país da Europa Central, o ápice da Páscoa acontece na segunda. Pode soar estranho para nós, mas em muitos lugares o dia seguinte ao domingo de Páscoa é feriado.
Pois bem. Segunda de Páscoa, na Eslováquia, é o dia em que pequenas gangues de moleques pequenos e moleques crescidos fazem uma farra à procura de chocolates, uns trocados e uns tragos.
Como eles conseguem isso? Ao bater, de brincadeira, nas meninas do bairro com ramos de salgueiro, ou apenas com uma varinha improvisada. Não satisfeitos, entornam baldes de água nas cabeças delas. Tudo feito, de preferência, com roupas típicas.
Terminada a artimanha, eles são agraciados com guloseimas. Os mais novos podem ganhar moedinhas, ao estilo "gostosuras ou travessuras" do Halloween. Mais velhos são agraciados com doses de borovicka (o destilado nacional, semelhante ao gim) ou de alguma outra bebida forte disponível.
Aí é comilança e festa. Tudo em torno da hospitalidade pela qual os eslovacos são conhecidos.
Só que é uma programação estressante para a metade molhada da celebração. "Homens amam a Páscoa. Mulheres odeiam", resumiu a etnógrafa Zuzana Benusková em uma entrevista de 2001 ao site "The Slovak Spectator".
De lá para cá, as coisas não mudaram muito. Vídeos recentes no YouTube mostram a tradição em prática.
Aqui, na versão tradicional:
E aqui a brincadeira mais "vida real", no improviso:
Mais antigo que a Páscoa
Essa época do ano é marcada pela chegada da primavera no Hemisfério Norte. É tempo de renovação. Egípcios, gregos e europeus já tinham festas com essa temática bem antes da chegada do cristianismo.
Na Europa do Norte, Eoster (ou Ostara), deusa da fertilidade e da primavera, era a rainha da ocasião. Quando a Igreja chegou, no século 9º, parte dessas festividades foi assimilada para celebrar a ressurreição de Jesus.
Pouca coisa sobreviveu, no entanto. A mais emblemática é o nome do feriado, que em alemão ("Ostern"), em inglês ("Easter") e em outros idiomas deriva diretamente da deusa. Outra é o costume de eslovacos, e também de alguns tchecos, poloneses e húngaros, de brincar com a vara ("?iba?") e jogar água ("oblieva?").
O rito eslovaco de Páscoa servia para purificar a mente e o corpo. Procissões pelas ruas afastavam os maus espíritos, as pessoas decoravam as casas com plantas. A vitalidade dos ramos de salgueiro entrelaçados fluiria para o corpo das mulheres jovens e lhes traria fertilidade e beleza.
Majoritariamente cristã e católica, a Eslováquia desenvolveu com o tempo uma Páscoa que não escondia as raízes pagãs. Até o nome entrega os ritos diretamente ligados à natureza: em eslovaco, "Páscoa" é "Ve?ká noc", que quer dizer "grande noite".
A Páscoa e outras celebrações populares são lembradas no Museu da Vila Eslovaca, um complexo etnográfico dedicado à arquitetura típica e ao folclore do país. Em meio a construções do século 18, o museu sedia festividades ao longo do ano, como o Carnaval e a "Grande Noite".
O comunismo
Mas essa cultura viveu momentos difíceis. Em 1945, a Eslováquia era um país governado pelo bispo Josef Tiso, aliado dos nazistas.
Os soviéticos, vencedores da Segunda Guerra, ocuparam o país e abriram o caminho para os eslovacos se juntarem aos vizinhos tchecos e recriarem o país que existiu no Entreguerras, a Tchecoslováquia.
Os socialistas tomaram o poder em 1948, e na década seguinte os hábitos e rituais religiosos, fossem cristãos ou não, caíram no ostracismo. O êxodo rural também contribuiu para o abandono das antigas práticas.
A queda do regime, em 1989, e a nova separação entre os vizinhos, em 1993, ajudaram na retomada. Mas já eram outros tempos.
Se antes, em algumas vilas, era normal atirar as mulheres no rio, agora os homens se consolavam usando apenas baldes. Em Bratislava e outras cidades maiores, nem isso. Pistolas d'água e brinquedos menos agressivos têm preferência. Alguns borrifam perfume.
No interior, a situação é outra. "Não é surpreendente ver homens bêbados na segunda-feira de Páscoa andando de casa em casa", informa um texto do site de turismo "Welcome to Bratislava".
"Quanto mais os caras visitam as casas das garotas, mais orgulhosas elas devem ficar — bem, mulheres e meninas podem pensar de outra maneira", segue a autora, Maria Kecsoova, sem esconder a ironia.
O ritual ainda é uma parte importante da cultura eslovaca, tem relevância turística (tanto que é citado em diversos sites e guias de viagem). Mas muitas mulheres fazem questão de frisar que não é algo que todas adoram, não é uma festa em que necessariamente todo mundo se diverte.
"Minha mãe cresceu em uma vila pequena. Quando era pequena, ela era, com frequência, arrastada para o quintal e encharcada com baldes de água. Ou então era atirada em uma banheira cheia", escreveu Jana Kasperkevic, repórter do "The Guardian", em 2015.
"Um ano, visitando meus primos na mesma vila", segue Jana, "eu vi com horror ela no quintal sendo molhada com uma mangueira. Ela nem se importou em trocar as roupas molhadas, pois sabia que meia hora depois outro grupo de meninos chegaria para virar mais uns dois baldes d'água na cabeça dela."
Dizer que eu odiava a Páscoa quando criança seria um eufemismo. Em uma segunda de Páscoa, passei o dia inteiro escondida debaixo da cama da vizinha."
O lado bom da festa é que a comilança é farta. Tem salada de batatas com maionese, presunto cozido, sanduíches, frios em abundância, bolos e biscoitos. Tudo regado a doses fartas de borovi?ka ou outras bebidas caseiras de qualidade.
Então, já sabe. Quando resolver passar a Páscoa na Eslováquia e se aventurar pelo interior, leve uma capa de chuva. De todo modo, em abril, em Bratislava, chove bastante.
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