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Escócia pede perdão às bruxas do passado com ajuda de podcast sobre crimes
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57º36'N, 3º36'O
Witches Stone, Forres
Moray, Escócia, Reino Unido
À primeira vista, ela é desinteressante e inofensiva. Uma pedra metida entre uma rua e um muro na pequena Forres, no norte da Escócia. Mais ou menos como algumas calçadas em nossas cidades litorâneas, que às vezes não se importam em mudar de caminho e simplesmente abraçam e aglutinam essas rochas em suas vias.
Então, uma placa diz o significado da tal pedra: "A partir do Monte Cluny, as bruxas eram roladas dentro de barris com pregos. Onde os barris paravam, eles eram queimados junto com seu conteúdo destroçado. Esta pedra marca o lugar de uma dessas fogueiras."
A Escócia era um lugar perigoso para as mulheres entre os séculos 16 e 18. Segundo o Departamento de História da Universidade de Edimburgo, 3.837 pessoas foram condenadas por bruxaria. Não se sabe quantas exatamente foram executadas, mas a grande maioria (84%) eram mulheres — apesar da visão fantasiosa criada a respeito nos últimos séculos, homens também podiam ser julgados por bruxaria.
Mas, na Escócia, quase sempre eram mulheres. Nobres ou pobres, casadas ou viúvas, com menos de 20, mais de 70 e todas as idades nesse intervalo. Não havia um padrão que enquadrasse um tipo específico, qualquer uma podia ser acusada, torturada e executada (veja mais neste mapa interativo).
Em dado momento, a perseguição era tão corriqueira que estava embrenhada no mais alto escalão do poder. O rei Jaime 6° integrava um culto que defendia a caça às bruxas (mais tarde, com a união das coroas, ele se tornaria também Jaime 1° da Inglaterra, levando a política de perseguição ao vizinho).
Segundo Jeffrey B. Russell e Brooks Alexander em "História da Bruxaria" (Editora Aleph), o rei se convenceu da ameaça ao conhecer a história de uma jovem chamada Gilly Duncan. Conhecida por ajudar e curar os doentes, ela foi acusada pelo patrão, que, não satisfeito, tomou a iniciativa de torturar a moça até que ela confessasse o conluio com o demônio.
O homem à entregou à Justiça, e a pobre Gilly, ameaçada de mais tortura, acabou acusando mulheres e homens de Edimburgo e arredores. "Uma dessas pessoas, Agnes Sampson, mulher idosa de boa educação e reputação", escrevem os autores, "foi examinada pelo próprio rei. Como se recusasse a confessar, foi despida, teve seu corpo raspado e esquadrinhado até lhe encontrarem a marca do Diabo."
Agnes acabou contando uma história que dizia que um grupo de mulheres e homens se reunira, na noite de Halloween, em North Berwick, "onde dançaram, entraram numa igreja iluminada com velas pretas e renderam homenagem ao Diabo, personificado em um homem cujas nádegas beijaram. As bruxas tramaram uma tempestade para afundar o barco no qual o rei viajou para a Dinamarca; caso o sortilégio falhasse, Agnes planejara uma mágica com sangue de sapo contra o rei".
Agnes e outros acusados foram executados em 1591. A repercussão do caso, com supostos planos sinistros de regicídio e o acompanhamento minucioso do próprio Jaime 7°, lançou as bases para os julgamentos de bruxas na Escócia e na Inglaterra ao longo do século 17.
Desculpa qualquer coisa
A última pena de morte aplicada por bruxaria na Escócia aconteceu em 1727 (na Inglaterra, em 1684). Quase 300 anos depois, o assunto é uma importante questão de gênero no país. No Dia Internacional da Mulher, Nicola Sturgeon, a primeira-ministra da Escócia, fez um pedido póstumo de desculpas pelas milhares de condenadas pela Lei de Bruxaria de 1563. A governante escocesa classificou o período como uma injustiça colossal motivada por profunda misoginia.
Exatos dois anos antes, no Dia Internacional da Mulher de 2020, Zoe Venditozzi, escritora e professora, e Claire Mitchell, advogada, lançaram o podcast "Witches of Scotland" ("Bruxas da Escócia"), que acabou virando uma bandeira do assunto no país.
Tudo começou meio que sem querer. Segundo o site "Atlas Obscura", elas se conheceram em um casamento e conversaram empolgadas sobre uma paixão mútua, uma onda que também chegou ao Brasil com força: os podcasts de crimes reais.
Uma coisa levou a outra e elas resolveram mergulhar nesse "true crime" de dimensões históricas e "colossais", nas palavras de Sturgeon. O podcast virou porta-voz de uma grande campanha de mesmo nome, que ganhou apoio no Parlamento e culminou no pedido de desculpas da primeira-ministra no último Oito de Março.
Nas pesquisas, Mitchell usou sua experiência e ferramentas de trabalho para analisar antigos documentos de tribunais. Ela viu que muitas confissões eram fruto de tortura física e psicológica.
Torturadores são sanguessugas que se alimentam de confissões forçadas, sempre foi assim. A mensagem da dupla é clara e ecoa em outros países e por outros tipos de perseguição: mesmo que mortos há muito tempo, seus atos não podem ser esquecidos.
Os métodos dos torturadores eram diversos. Eles impediam as acusadas de dormir e as obrigavam a usar focinheiras de ferro semelhantes às máscaras-de-flandres impostas a escravizados no Brasil. Havia profissionais especializados em espetar as mulheres com uma agulha até encontrar um ponto do corpo, "a marca do diabo", em que elas não sangrassem ou não sentissem dor.
Venditozzi e Mitchell comemoraram o pedido de desculpas póstumo, mas o viram como apenas um passo em direção à oficialização do perdão às bruxas do passado. Não seria algo inédito. A Renânia do Norte-Vestfália, na Alemanha, e a Catalunha, na Espanha, já fizeram pedidos do tipo nos últimos anos.
No meio do caminho em Forres
A pedra em Forres fica a metros de distância da delegacia de polícia. O peso simbólico e os tempos atuais impedem, ou pelo menos dificultam, sua retirada. Mas não é por isso que ela permanece ali.
De acordo com o site "Visit Forres", ela chegou a ser removida para ser usada nas obras de uma casa ali perto. Mas o sujeito que ousou tirá-la do lugar caiu de cama, ardendo em febre, e tratou de devolvê-la.
A superstição venceu, de novo. Pelo menos, dessa vez, sem machucar nem matar ninguém.
Desde então, ninguém mais mexeu na pedra. O calçamento veio bem depois e a contornou. Hoje, a "Witches Stone" é um marco da cidade.
Forres tem outra pedra famosa, e bem maior e mais antiga. Sueno é um monumento de mais de 6 metros de altura, erguido entre 850 e 950 pelos pictos, um povo celta do nordeste da Escócia, provavelmente para comemorar uma vitória contra invasores vikings.
A cidade fica na rota das destilarias históricas escocesas, pois até 1983 funcionou, ali, a Dallas Dhu. Foi uma das primeiras produtoras de uísque a ter uma torre em estilo pagode, típico em alguns países da Ásia, mas que se tornou comum também nas destilarias da Escócia. O objetivo era melhorar a circulação de ar sobre os fornos.
Mas não tem jeito, a conexão mais forte de Forres é com as bruxas mesmo. Graças também a Shakespeare. O fatídico encontro de Macbeth com as três bruxas ocorre perto dessa cidade que, entre tantas outras da Escócia, quer se redimir.
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