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Cidade de imperador que "amaldiçoou" Stálin quer voltar aos dias de glória
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39º38'N, 66º58'L
Mausoléu de Tamerlão
Samarcanda, Samarcanda, Uzbequistão
Em 19 de junho de 1941, um famoso antropólogo russo chamado Mikhail Gerasimov se encontrava em Samarcanda, na então República Socialista Soviética Uzbeque. Sua missão, dada pelo próprio Josef Stálin, era exumar o corpo de Tamerlão, o imperador mongol que comandou um território que ia do leste da Turquia ao oeste da Índia no século 14.
Naquele dia, Gerasimov localizou a tumba de Tamerlão, também chamado de Timur, dentro do suntuoso mausoléu Gur-e-Amir. Seu objetivo era estudar o corpo, especialmente o crânio, para recriar o rosto do imperador e mostrar ao público como ele era em vida.
Quando as pessoas da cidade souberam do plano, ficaram aterrorizadas. Queriam impedi-lo de tal afronta. O time de Gerasimov não deu pelota e abriu a tumba, que ainda exalava as fragrâncias de almíscar e água de rosas, usadas no embalsamento mais de 500 anos antes.
Masood Alaev, guardião do memorial, traduziu uma suposta inscrição gravada na tumba de jade: "Quando eu me levantar dos mortos, o mundo tremerá". Pois é, você, eu, qualquer um daria meia-volta depois dessa. Gerasimov, não.
Alaev acabou preso por espalhar falsos rumores. O jazigo foi aberto e havia outra mensagem, ainda mais enfática, que era para não deixar dúvidas de com quem eles estavam se metendo: "Aquele que abrir minha tumba libertará um invasor mais terrível do que eu."
Tamerlão: breve ficha criminal
Ele nasceu por volta de 1336. Era tártaro, um povo das estepes da Ásia Central que fora subjugado pelos mongóis (mais tarde, os europeus acabaram transformando "tártaro" e "mongol" em sinônimos). Muçulmano devoto, Tamerlão se dizia descendente de Gêngis Khan e de Ali, o sucessor de Maomé para os xiitas.
Fez de Samarcanda a capital de seu império e comandou invasões pela Pérsia e além, ocupando o vácuo deixado pelo colapso mongol na região. Assim como Gêngis mais de 100 anos antes, Tamerlão gostava de tocar o terror. Trancafiou 2 mil prisioneiros e uma torre e os matou de fome em Isfizar. Incendiou a cidade de Zaranj, apesar de a população ter se rendido sem lutar. Em Isfahan, mandou erguer 28 torres de cabeças humanas, cada uma com 1.500 "peças".
Chegou a Moscou, Délhi, Alepo e Bagdá, onde aprimorou a arquitetura macabra: 120 torres, 90 mil cabeças. À noite, por anos, as cabeças decepadas emitiam chamas sobrenaturais, segundo relatos da época.
Tamerlão só parou quando morreu, de febre, a caminho da China, que ele queria reconquistar para os mongóis. Entre 1370 e 1405, ele deixou um rastro de 17 milhões de mortes.
Os flagelos de Deus
Gerasimov sabia da fama de Tamerlão, mas fez pouco caso, pois era um cientista. Então, naquela quinta-feira de junho de 1942, o descanso eterno de Tamerlão foi perturbado no Uzbequistão.
No domingo, Hitler invadiu a União Soviética.
A Alemanha rasgou o pacto de não-agressão que havia firmado com a URSS. Se Gerasimov tivesse dado atenção aos recados, a história poderia ter sido outra, diriam as pessoas, aflitas, nas ruas.
Só que isso se trata, é claro, de uma lenda. Sim, Gerasimov foi um grande arqueólogo e recriou os rostos de figuras históricas. Além de Tamerlão, ele também reconstituiu as feições de Ivan, o Terrível. Sim, Tamerlão foi um imperador cruel e, sim, a Operação Barbarossa, em que os nazistas invadiram o território russo, começou dias após a exumação. Mas qualquer conexão entre os fatos é especulação e apenas um deleite para os fãs de teorias conspiratórias.
Mas as conexões não pararam por aí. Em novembro de 1942, os restos de Tamerlão retornaram a Gur-e-Amir. Dias depois, durante a Batalha de Stalingrado, o jogo começou a virar para os Aliados. Os soviéticos venceriam a batalha, meses depois, e a guerra, em 1945.
Coincidência ou não, era melhor deixá-lo quieto na tumba. Por isso a lenda é tão difundida, especialmente na Ásia Central, onde o nome de Timur provoca reações diversas.
Afinal de contas, superar Tamerlão em matéria de atrocidades não era nada fácil. Mas os nazistas criaram um novo patamar. Em apenas 12 anos, eles exterminaram ostensivamente 15,5 milhões de pessoas entre judeus, eslavos, ciganos, doentes mentais, homossexuais e prisioneiros de guerra. Fora que provocaram a maior guerra da história, que causou a morte de 66 milhões de seres humanos.
Segure o dedo, ó ansioso comentarista de portal. Já falo do Stálin.
Sim, o ditador soviético também está lá entre os grandes perpetradores. Entre 1928 e 1953, ele deixou sua marca: 13 milhões de execuções e mortes em campos de concentração. Isso sem contar os mortos de fome na URSS, especialmente na Ucrânia, que ceifou mais umas 7 milhões de vidas.
Todos os números são do especialista em atrocidades Matthew White e seu "Grande Livro das Coisas Horríveis" (Rocco). São aproximações baseadas em centenas de relatos e estimativas, por isso são números mais imparciais, digamos assim, porque quando se fala em mortes do comunismo vs. mortes do nazismo é assunto que vira briga no boteco. Você pode encontrar fontes que dizem que Stálin matou 3 milhões ou 50 milhões de pessoas. Já Hitler pode ir de 11 a 25 milhões, com o Holocausto incluído.
Samarcanda, joia rara
Assim como Bucara, também no Uzbequistão, Samarcanda é uma das cidades mais antigas da Ásia Central e um dos grandes símbolos da Rota da Seda, a rede de estradas que conectava a Europa à Ásia e por onde transitavam produtos, ideias e religiões.
O primeiro conquistador de renome a fincar os pés na cidade foi logo o maior de todos, Alexandre, em 329 a.C. Os persas sassânidas chegaram em 260 d.C. e o Califado Umíada, em 710. Entre cada uma dessas grandes conquistas, outros impérios chegaram a dominar Samarcanda, como Selêucida e Kushan.
Os islâmicos mantiveram o controle sobre a cidade, que passou do Califado Umíada para o Abássida e depois para o Império Seljúcida. A diversidade religiosa e cultural era enorme, e a população seguia fés como zoroastrismo, budismo e hinduísmo, além de judaísmo e nestorianismo, uma antiga doutrina cristã.
Em 1220, Gêngis Khan chegou com o caos. Pilhagens e assassinatos em massa devastaram Samarcanda. Ainda assim, décadas mais tarde, ela foi descrita como "esplêndida" e uma das "mais belas cidades do mundo" nos relatos de Marco Polo e de Ibn Battuta, respectivamente.
Isso antes de Tamerlão fundar o Império Timúrida, fazer de Samarcanda sua capital e recheá-la de grandes obras públicas e artesãos. Ele pode ter sido um dos maiores perpetradores de massacres da história, mas soube valorizar a arquitetura e a arte.
Após sua morte, o espírito empreendedor da cidade persistiu. Seu neto construiu uma madrassa, que recebeu astrônomos e matemáticos de vários cantos do mundo.
A última grande potência a tomar a cidade foi o Império Russo, em 1868. O Uzbequistão resistiu às mudanças da Revolução Russa, mas acabou incorporado à União Soviética em 1925, da qual se livrou em 1991.
Restauros polêmicos e gentrificação
Apesar de ficar nesse ponto de fratura entre impérios, califados e khanatos ao longo de milênios, Samarcanda sofreu menos com a guerra do que com a natural deterioração do tempo e os chacoalhões vorazes de terremotos.
A esplendorosa Mesquita Bibi Khanym, batizada em homenagem à esposa de Tamerlão no século 15, estava em ruínas 400 anos depois. Então um terremoto derrubou quase tudo o que restava, em 1897.
A partir dos anos 1970, o governo uzbeque iniciou a reconstrução da obra. Quem a vê hoje não vislumbra uma mesquita da época do chamado renascimento timúrida, mas um edifício novo, erguido pelo Uzbequistão socialista.
Até aí, normal. Guerras e desastres naturais estão destruindo tesouros do passado o tempo todo, e se não fossem reconstruídas e restauradas, não sobraria muito o que visitar. Se hoje Dresden é uma das cidades mais bonitas da Alemanha, após a Segunda Guerra só havia escombros. Se as pontes de Budapeste podem figurar entre as mais lindas do mundo, é porque foram reconstruídas após a guerra.
Lisboa e Tóquio renasceram após terremotos. Londres e Chicago, depois de grandes incêndios. O mapa de Berlim é uma colcha de retalhos do século 20 por causa das consequências da Segunda Guerra e da Guerra Fria na cidade.
Você foi para a Croácia e achou os telhados da cidade murada de Dubrovnik um tanto novos? É porque são: a "pérola do Adriático" foi intensamente bombardeada durante o cerco à cidade, na guerra de independência, há 30 anos.
Em Samarcanda, não foi diferente. Quer dizer, até certo ponto.
Bibi Khanym ganhou ornamentos caligráficos e uma muralha que não replicam com honestidade a arquitetura do século 15. Esse padrão, ou a falta dele, se repetiu em outras obras de restauro, o que há anos levanta polêmicas entre pesquisadores, organizações internacionais e governos, além dos moradores locais e dos turistas.
A Unesco condecorou Samarcanda como patrimônio da humanidade em 2001 ao chamá-la de "cruzamento de culturas". Mas depois ela criticou as obras de restauro e sua suposta falta de cuidado com o passado.
O assunto é polêmico. Obras de restauração sempre refletem a época em que são feitas, seja nos estilos ou nas tecnologias implementadas. Mesmo buscar ser o mais fiel possível ao original é uma escolha que também pode causar controvérsia.
O pináculo de Notre-Dame, engolido pelo fogo há três anos, ilustra bem. Houve projetos ousados para a restauração, como fazer uma estufa no telhado ou um pináculo de vidro para substituir o de madeira, destruído no incêndio.
Mas o escolhido foi um que sugeriu reconstruir a estrutura como ela era, inclusive com marceneiros que dominam técnicas antigas. O projeto tem sido criticado por demandar grandes carregamentos de carvalho, o que não combinaria com uma sociedade do século 21.
Isso tudo para recriar a Notre-Dame do século 19, quando ela passou por uma grande reforma e se tornou a catedral que conhecemos. Não a "original". Quando falamos de um edifício que foi construído ao longo de 200 anos, há quase um milênio, definir o que é original não é tão simples.
Ainda assim existe um documento, a Carta de Veneza, assinada em 1964 pela Unesco e muitos órgãos de conservação, que norteia as obras do tipo. Basicamente, o objetivo não deve ser buscar a versão mais bela daquela construção, mas a mais autêntica e a que preserva mais camadas de história.
Não é, segundo os críticos, o que aconteceu em Samarcanda nas últimas décadas. Mesquitas, madrassas e mausoléus teriam se tornado construções pasteurizadas e artificiais, praticamente uma Disney da Rota da Seda.
A situação fica ainda mais delicada quando se trata de um país fechado, uma ex-república soviética que teve só dois presidentes nos últimos 30 anos e cuja principal cidade histórica inspira lendas romanceadas no Ocidente há séculos. O dramaturgo inglês Christopher Marlowe, uma das influências de Shakespeare, colocou a cidade no imaginário de seu público ao descrevê-la em uma peça sobre, justamente, Tamerlão. O governo uzbeque, ciente disso, alimentou a mística em suas reconstruções e restauros.
Deu certo para embasbacar visitantes com seus pórticos, domos e pátios? Deu, é lindo.
Mas o excesso de conservação contrasta com áreas nas vizinhanças largadas e empobrecidas. A gentrificação abriu espaço no entorno do centro histórico, removendo antigas moradias para a construção de ruas e novos prédios residenciais.
Com isso, os monumentos de Samarcanda ficaram desligados do resto da cidade, aumentando a sensação de artificialidade. Protestos contra os problemas de habitação eclodiram, mas nada mudou.
Os defensores das obras alegam que, não fossem elas, Samarcanda estaria esquecida nas enciclopédias. É um ponto importante. Convenhamos, o Uzbequistão não é um destino turístico lá muito comum. O país precisava construir uma identidade nacional ao mesmo tempo em que buscava atrair visitantes.
Mas agora isso pode mudar. Samarcanda parece querer entrar em uma nova era.
Novos tempos
No ano passado, após uma série de reuniões, o governo uzbeque e a Unesco criaram um comitê para acompanhar de perto as obras de restauro ao mesmo tempo em que envolve as comunidades locais e busca reconectá-las aos monumentos. Novas gerações de arquitetos e engenheiros parecem mais interessadas em preservar a história do país em vez de recriar uma fantasia da Rota da Seda, segundo a "National Geographic"..
Também no ano passado, Samarcanda se tornou a primeira cidade uzbeque a integrar um programa de cidades verdes do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento. O plano é diminuir as emissões de gás carbônico e criar mais espaços sustentáveis, algo necessário no clima árido e frio do Uzbequistão, um país que vem derrubando árvores em grande escala nos últimos tempos.
Outro problema apontado é, de novo, a urbanização descontrolada. Muitas cidades no país construíram prédios sem recuo e sem respiro entre eles, com o intuito de maximizar o uso do espaço, o que, consequentemente, resultou em ruas menos verdes.
Em regiões históricas, o problema se agrava. Em 2017, segundo o site "The Diplomat", construtoras compraram alvarás falsos para erguer prédios de alto padrão em áreas protegidas pela Unesco.
Não menos importante, o Uzbequistão, como sempre no meio do caminho dos acontecimentos da humanidade, está sentindo os baques recentes. O país não tem acesso ao mar e seu maior parceiro comercial é a Rússia, alvo de sanções econômicas desde que invadiu a Ucrânia. No sul, a fronteira é com o Afeganistão, o que não tranquiliza a vida de ninguém. A China, de onde sai a maioria dos produtos importados pelo país, está mais uma vez envolta nos problemas da pandemia, com novos lockdowns em Xangai.
De olho em outros mercados, o Uzbequistão realizou, este ano, sua primeira conferência internacional de investidores. É um passo importante na terra natal do filósofo Avicena, um dos pais da medicina e uma das maiores mentes da história da humanidade. Samarcanda quer que o mundo volte a olhar para ela, mas sem exagerar na maquiagem.
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