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REPORTAGEM

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Esse dia foi louco: a pancadaria de emos, punks e hare krishnas no México

Punks protestam contra emos na Cidade do México, em 2007 - EFE/ Victoria Valtierra
Punks protestam contra emos na Cidade do México, em 2007 Imagem: EFE/ Victoria Valtierra

Colunista de Nossa

15/05/2022 04h00

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19º25'N, 99º09'O
Glorieta de los Insurgentes
Roma, Cidade do México, México

Se você estava neste mundo redondo em 2008, possivelmente os via com frequência. Talvez conhecesse alguns. Se bobear, até era um deles.

Os emos se destacavam na fauna urbana em diversos países e já eram um movimento bem estabelecido no fim dos anos 2000. A América Latina, especialmente, foi um território em que eles se proliferaram com esmero.

Em março daquele ano, no Brasil, o "Top 10 MTV" (herdeiro do "Disk MTV", porque naquela época ninguém mais telefonava para a TV) era frequentado por clipes como "Nine in the Afternoon" (Panic! At the Disco), "Pela Última Vez" (NX Zero) e "Misery Business" (Paramore) — esta chegou a ficar no topo da parada.

O gênero musical, um hardcore melodioso e emotivo, não era novidade alguma. Ele surgiu no submundo do rock americano dos anos 1980. Foi um longo caminho até sair dos guetos e gerar, 20 anos depois, uma cultura popular massiva que envolvia, além da música, moda e estilo de vida.

Em 2008, era impossível, por exemplo, descer a Rua Augusta sem cruzar com alguma franja escondendo quase metade do rosto. Fazia parte da paisagem, foi um símbolo da época.

Apesar (ou por causa), de tamanha popularidade, os emos eram alvo constante de implicância, quando não de intolerância. Você podia até não conhecer um emo, mas devia conhecer um, ou vários, antiemos, que às vezes, sem ter mais o que fazer, desciam a mesma Augusta apenas para distribuir cusparadas nessa turma.

Na música, algumas bandas, como Panic! at the Disco e My Chemical Romance, rejeitavam o rótulo, da mesma forma que os artistas de Seattle que mudaram a cara do rock na década anterior desprezavam o termo "grunge". Na moda, apesar de conquistar passarelas e vitrines (de novo, como o grunge), o estilo emo também foi perseguido pelos ditos formadores de opinião.

Acabou virando assunto político. Na Rússia, a Duma, o equivalente à Câmara dos Deputados, chegou a propor uma lei que regulasse sites e proibisse trajes do tipo nas escolas, porque via no emo uma moda perigosa que promovia comportamentos antissociais que podiam levar à depressão e ao suicídio.

O bicho pegou também no México, onde a onda era muito forte. Além de escutar Good Charlotte, Fall Out Boy e afins gringos em seus tocadores de mp3, os mexicanos tinham seus artistas nacionais, como Nikki Clan, Allison e Pxndx (pronuncia-se "Panda"). O emo era um estouro no país. O antiemo, idem.

Após ondas de violência em Querétaro, Monterrey, Guadalajara e Puebla, esses jovens decidiram se mexer. Conclamaram seus semelhantes e simpatizantes no Metroflog, espécie de Fotolog que desbancou o MySpace no México, e no Hi5, uma rede social americana que fazia sucesso em boa parte da América Latina.

Por meio dessas ferramentas do Pleistoceno da era digital, os emos organizaram uma manifestação pacífica na Glorieta de los Insurgentes, uma área pública da capital onde há estações de metrô e BRT, uma rotatória que conecta importantes avenidas e uma grande praça.

A Glorieta era um endereço conhecido, pois era onde eles se reuniam para escutar música, andar de skate e tomar Fanta. Então era esperado que muitos fossem aparecer.

Os emos já se somavam às dúzias no protesto, gritando por respeito e empunhando cartazes. Então, um pequeno grupo de punks surgiu e começou a provocá-los. A rixa era de longa data. O emotional hardcore nasceu como um subgênero punk, mas acabou gerando essa tribo urbana um tanto diferente: emotiva demais, maquiada demais, sensível demais — pelo menos para certos moicanos ultraortodoxos que viam neles apenas imitadores baratos.

Alegando que os emos estavam "roubando e desvirtuando seu estilo", os punks começaram gentilmente a oferecer xingamentos e algumas botinadas. O carinho foi retribuído por meio de garrafas, pedras e o que estivesse ao alcance dos jovens emos.

Glorieta de Insurgentes - Fotosintesistt - Fotosintesistt
Glorieta de Insurgentes
Imagem: Fotosintesistt

A polícia chegou para apaziguar os ânimos, e em seguida uma equipe de TV começou a registrar o tumulto. A cena, em seguida, começou a ficar mais surreal.

Minutos depois, os punks ganharam aliados improváveis. Seus rivais históricos metaleiros, e também os góticos, se uniram na missão de achincalhar publicamente os emos.

O que começou como um protesto pacífico descambou para uma folclórica batalha campal de xingamentos e sopapos. Basicamente tínhamos de um lado a moda underground que agora era mainstream versus modas undergrounds que foram mainstream em tempos passados.

A Glorieta de los Insurgentes virou um caos. Era calça skinny, rímel, jaqueta com spikes, cintos cravejados, chaveiros-correntes, coturnos e tudo mais se pegando e ofendendo.

Mais de 100 policiais se envolveram na operação, mas o que resolveu a pendenga não foi a repressão fardada ou o constrangimento das câmeras de TV ligadas. Foi a chegada de outra "tribo", uma com menos aspirações musicais e terrenas e muito menos maquiagem. O preto dos "punketos, darketos, emos y metaleros" abriu espaço para as roupas de cor açafrão dos hare krishna.

Entre louvores e chamados pela paz, os hare krishnas conseguiram acalmar um pouco o clima, não sem antes levar para casa ofensas e pontapés. Eles pediram um abraço coletivo, mas fracassaram. Pelo menos conseguiram fazer a galera baixar as armas, entrar no metrô e ir embora.

Não houve casos de ferimentos graves, e, de acordo com notícias da época, muitos participantes postaram depois na internet que entraram na confusão apenas para se divertir. Felizmente, o episódio entrou para os anais da cultura urbana da Cidade do México apenas como um dia bizarro, e não como uma tragédia.

Não foi o que ocorreu no Iraque, em 2012, quando dezenas de adolescentes emos teriam sido espancados e assassinados.

A briga de março de 2008 reforçou a vocação da Glorieta como palco de importantes manifestações sociais e culturais desde que foi inaugurada em 1969, durante as obras da primeira linha de metrô da cidade. É algo que já está em seu nome.

Trata-se de uma referência ao sino com o qual, segundo a tradição, Miguel Hidalgo y Costilla convocou a população da cidade de Dolores Hidalgo a se rebelar contra o governo espanhol na noite de 16 de setembro de 1810. O Sino de Dolores é o marco do início da guerra de independência. Hoje, é um símbolo dos insurgentes que resolveram peitar as autoridades.

Por ter sido construída a um nível abaixo do da rua, a praça dá acesso, a pé, a áreas importantes da capital, como a Zona Rosa e Colonia Roma, o belo bairro centenário que o filme de Alfonso Cuarón ajudou a divulgar. É essa arquitetura de encontros da Glorieta que estimulou, e estimula, tantas manifestações, shows e exposições. Há algumas semanas ela virou uma grande pista de dança da comunidade LGBTQIA+. Anteontem, houve um protesto de um coletivo feminista.

Outra característica interessante da estação de metrô e da rotatória (ou rótula, rotunda, como preferir) são as representações de glifos maias e das lápides de Puebla. Isso simboliza o México em tempos antes e durante a colônia. Dentro da estação, há homenagens a plataformas dos metrôs de Londres e Paris. Um aceno a um México mais globalizado.

Dessa forma, a Glorieta fincou pés no passado e no futuro. Ou em um futuro, distópico: a arquitetura arrojada da praça inspirou o diretor Paul Verhoeven, que a escolheu como um importante cenário do filme "O Vingador do Futuro" (1990).

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Ora, se os hare krishnas tivessem falhado, Schwarzenegger teria resolvido a situação. Tio Arnold, um "Nirvana que une todas as tribos", viria do futuro para acalmar a molecada e mostrar que aquilo tudo era uma bobagem.

Foi o que fez uma usuária do YouTube, "voltar do futuro". Em 2022, ela deixou um comentário no vídeo da notícia de 2008:

"Eu era emo e meu marido é punk. Há pouco tempo nos demos conta que estávamos nesse dia, ele com 26 e eu com 16 anos. Não nos conhecíamos, e é divertido pensar que 14 anos depois terminamos juntos."

No fim das contas, o rock continua unindo.

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