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Estátua bem-dotada escandaliza o Peru, mas é seu próximo hit turístico

Estátua erótica da cidade de Moche, no Peru - Municipalidad Distrital de Moche
Estátua erótica da cidade de Moche, no Peru Imagem: Municipalidad Distrital de Moche

Colunista de Nossa

05/06/2022 04h00

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8º07'S, 78º59'O
Parque da Fertilidade, Moche
Trujillo, La Libertad, Peru

Cidades que causam polêmica quando resolvem instalar estátuas e monumentos. Taí uma história que se repete — e nem precisamos entrar no mérito do revisionismo e do cancelamento, assunto que já tratei bastante aqui na coluna, seja em Barbados, Chile ou Turcomenistão.

Em cinco minutos no buscador de notícias do Google, eu descobri que, em 2012, o prefeito de Muriaé, na Zona da Mata mineira, resolveu erguer um Cristo Redentor de 32 metros para sua esposa. Em 2017, a prefeitura de Campo Bom, no Vale do Sinos (RS), mandou retirar uma grande escultura em forma de pé — a obra havia sido instalada em 2004 durante a gestão de um prefeito cujo apelido era, veja só, Pé Grande.

Em 2021, Encantado, no Vale do Taquari (RS), inaugurou um Cristo maior que o carioca, o que, é claro, chamou a atenção em todo o país. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, em seu já manjado bairrismo afobado e desnecessário, tuitou: "construir estátua maior é fácil, quero ver é ter essa vista".

O que não era para ser polêmica acabou virando uma, então o prefeito de Encantado, Jonas Calvi, respondeu com elegância à insegura provocação de Paes: "O Rio de Janeiro continua lindo e o mundo inteiro já conhece. Agora venham todos conhecer o Cristo Protetor de Encantado e as belezas do Vale do Taquari, conhecer nossa cultura e saborear nossa culinária maravilhosa! Vamos adorar receber todos vocês."

Ídolo do esporte olímpico, João do Pulo já está na terceira estátua em sua Pindamonhangaba natal, no Vale do Paraíba paulista. A antecessora foi uma fábrica de memes, assim como o famigerado "touro de ouro" instalado em frente à Bolsa de Valores, em São Paulo, no ano passado. Ele foi removido do local, destino idêntico ao do Jair Bolsonaro de sucata de Passo Fundo (RS).

Mas o que aconteceu no Peru, este ano, está em outro patamar, meu amigo gestor público, minha amiga empreendedora. Misture política, sexo, Igreja e uma cultura milenar e você será assunto no noticiário, na paróquia, na universidade e no botequim. De quebra, pode ter criado uma nova atração em um país que esbanja turismo.

Vaso do amor

Huaca Del Sol Y La Luna - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Huaca Del Sol Y La Luna
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Em janeiro, a prefeitura de Moche, vizinha de Trujillo, a terceira maior cidade do Peru, inaugurou uma grande estátua que representa um huaco moche. "Huaco" é um termo genérico para vasos de cerâmica feitos no Peru pré-colombiano. Moche, também chamada de mochica, é uma antiga civilização que se desenvolveu no norte do Peru há cerca de 2 mil anos.

Poucas culturas na história da humanidade se igualam aos moches nas habilidades com a cerâmica. É algo reconhecido nos melhores museus, nas galerias mais prestigiadas.

Logo, a cidade que hoje existe no centro dessa antiga civilização, e que inclusive herdou seu nome, ter decidido homenageá-la faz todo sentido. Ainda mais se considerarmos que a herança moche é o maior chamariz turístico da região.

A questão foi o tipo de huaco escolhido. O vaso gigante representa um homem, sorridente e viril, saudando os transeuntes que usam a estrada que leva às ruínas dos templos Huaca del Sol e Huaca de la Luna. A saudação é com a mão, só que o que é de parar o trânsito, às vezes literalmente, é a saudação do pênis. Um falo enorme, rijo e comicamente desproporcional.

Estátuas eróticas da cidade de Moche, no Peru - Municipalidad Distrital de Moche - Municipalidad Distrital de Moche
Estátuas eróticas da cidade de Moche, no Peru
Imagem: Municipalidad Distrital de Moche

Huacos de temática sexual são uma marca dos moches. Há uma série de posições sexuais, masturbações e outras estripulias que podem provocar risos nervosos ou reações escandalizadas em olhos contemporâneos mais conservadores. Mas não é sacanagem gratuita, as obras são representações da fertilidade e da vida.

Em Lima, o Larco, um dos melhores museus da América Latina, tem o maior acervo de peças do Peru antigo do mundo. Quem o visita sempre se impressiona com as "ousadas" cerâmicas moches.

Quando a estátua foi inaugurada, muita gente gostou, parou para tirar foto, acariciar o robusto membro, brincar e fazer gracinha no bilauzão. Mas muita gente revirou os olhos.

O Peru é um país conservador. Pedro Castillo, o atual presidente, é um político de esquerda contrário à ampliação de direitos da comunidade LGBTQ+ e à legalização irrestrita do aborto, por exemplo.

"Pensem nas crianças!" e "No museu, até que vai, mas aqui no meio da rua!?" eram argumentos usados com frequência por aqueles que desaprovaram a obra. Um padre em Moche disse, durante a missa, que o mínimo que os fiéis deviam fazer era não visitá-la.

Tanto faz. Caravanas de curiosos seguiram conferindo a novidade, até que alguém, incomodado e possivelmente diminuído pelo titânico pinto, teve uma atitude de cidadão de bem e vandalizou a estátua.

Estátua erótica da cidade de Moche, no Peru, foi vandalizada - Municipalidad Distrital de Moche - Municipalidad Distrital de Moche
Estátua erótica da cidade de Moche, no Peru, foi vandalizada
Imagem: Municipalidad Distrital de Moche

Foram precisos três homens armados para danificar a glande do huaco. A onda de testosterona ofendida só aumentou nos dias seguintes e finalmente a estátua foi incendiada e reduzida a cinzas e escombros, segundo o portal de notícias peruano RPP.

Horta de pintos

A bonança dos radicais conservadores durou pouco. Eles conseguiram se livrar do "Huaco del Amor", como a obra se chamava, poucas semanas após ela ter sido inaugurada. Mas já em fevereiro Moche ganhou outra estátua, e ainda mais bem-dotada.

Não só. Logo ela ganhou a companhia de outras obras despudoradas, incluindo uma mulher com uma vagina larga como um poço. Do nada, o caminho para Huaca del Sol agora tem um jardim erótico.

A estátua original, reconstruída, é a mais popular de todas. Mas curiosamente ela é a menos fiel à herança moche, em termos estilísticos. O sorriso jovial e a mão simpática são uma invenção do artista que assina a obra, Paco Calderón. De resto, a inspiração é 100% mochica.

Polêmicas de lado, esse jardim das delícias acaba apresentando a muita gente, em especial àquela da região, um pouco da cultura ancestral que floresceu há dois milênios ali mesmo. Para os turistas, acaba sendo um aquecimento para os templos, uma forma de se inteirar (ou de se jogar?) das cerâmicas moches.

Catedral em Trujillo, Peru - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Catedral em Trujillo, Peru
Imagem: Getty Images/iStockphoto

As obras têm servido para esquentar um pouco o turismo local, que sofreu um baque com a pandemia e precisa dar seu jeito de chamar a atenção. Trujillo fica a um voo de uma hora de Lima ou a quatro horas de Cusco. Centro da cultura inca, base para visitar Machu Picchu e outras ruínas e tesouros do império, Cusco, no sul do país, fica um tanto longe de Trujillo. Nem todos os turistas estrangeiros reservam uns diazinhos para ir ao norte do Peru.

Ruínas de Chan Chan, nos arredores de Trujillo - Getty Images - Getty Images
Ruínas de Chan Chan, nos arredores de Trujillo
Imagem: Getty Images

Ainda assim, a questão econômica fica irrisória quando o assunto é moralismo. As estátuas continuam causando e o prefeito, Arturo Fernández, tem sido chamado de um oportunista que só quer chamar a atenção em ano de eleição. Ele rebateu as críticas dizendo que se trata de uma homenagem à herança cultural da cidade e de um símbolo da vida e da fertilidade em um lugar que era, e continua sendo, muito árido.

As estátuas reforçam que os vasos são um sucesso, como foram no passado ancestral. Há miniaturas à venda na feira e os bares oferecem pisco sour em copos no mesmo formato. O huaco é tema de festa de aniversário e já virou mascote de time.

As pessoas estão, de certa forma, preservando a tradição moche. "Esses objetos não foram feitos para ser exibidos, mas para serem usados, para o povo beber neles", explicou Ulla Holmquist, arqueóloga, ex-ministra da cultura e diretora do Museu Larco ao site "Atlas Obscura".

Em mais uma dose de politicagem marota, o prefeito Fernández declarou que a obra original, que atiçou os vândalos ofendidos com tamanha opulência, se chama "Huaco del Amor" porque ela quer unir os peruanos. E o país, tão marcado pela polarização dos últimos anos, assim como seu vizinho grande aqui, precisa de mais união.

Em fevereiro, de acordo com o "La República", um dos principais jornais do país, Fernández chegou a declarar que a cidade ganharia mais huacos eróticos. "Como ginecologista, gostaria de colocar o parto da senhora Mochica e mais 30 ou 40 guerreiros em todo o campo, até que este seja o polo turístico mais importante de todo o Peru."

Boa sorte na empreitada.

Os mochicas

Holmquist viu com bons olhos a iniciativa, ao menos em termos culturais. Para muitos, é uma oportunidade gratuita de entrar em contato com suas raízes. Além disso, acaba sendo uma aula de educação sexual. "As pessoas descobrem uma maneira nova e mais relaxante de se relacionar com seus próprios corpos, de falar sobre eles, o que é terapêutico."

No início do ano, os vasos eróticos mochicas do museu estrelaram uma inusitada campanha de conscientização e prevenção do câncer de próstata. "Toque os genitais mochicas", dizia.

Os moches usavam esses utensílios em celebrações em que o humor representava um olhar metafórico sobre a vida. De certa forma, é o que as estátuas oferecem hoje, por mais que muitos possam espinafrar a estética delas e o oportunismo político envolvido.

Os moches espelhavam diversos aspectos de sua existência nas cerâmicas. Por isso, também, eles eram peritos no assunto.

Essa civilização se desenvolveu na estreita faixa de terra quase desértica entre o Pacífico e os Andes. Ela não nos deixou escrita, apenas vasos, em seus mais de 800 anos de existência.

Há representações animais, de corujas a leões-marinhos. As humanas também são variadas, tem de sacerdotes, guerreiros e pescadores.

guerreiro moche - British Museum - British Museum
Figura em cerâmica de guerreiro moche
Imagem: British Museum

"Escavações arqueológicas de sepulturas mochicas em geral revelam um grande número desses vasos decorados — às vezes, diversos deles —, todos cuidadosamente ordenados e organizados em torno de temas e assuntos repetidos", escreveu o historiador Neil MacGregor no ótimo "A História do Mundo em 100 Objetos" (Intrínseca). O livro conta a história e a relevância cultural de cem peças do mundo todo pertencentes ao acervo do Museu Britânico, que MacGregor dirigiu até 2015.

"A simples quantidade de vasos mochicas que chegaram até nós já nos conta que a sociedade mochica deve ter operado em uma escala considerável. A fabricação devia ser uma indústria com estruturas complexas de treinamento, produção em massa e distribuição", conta.

Os moches eram mestres da irrigação e da agricultura, algo necessário vivendo em um lugar tão árido. Essa faixa de cerca de 560 quilômetros tinha uma existência literalmente estreita, limitada entre o oceano e a cordilheira.

O maior de seus assentamentos, hoje nos arredores de Trujillo, onde ficam as Huacas del Sol e de la Luna, foi a primeira cidade da América do Sul de que se tem notícia. Pelo menos a primeira no sentido de cidade que temos hoje, com ruas, canais e praças.

O melhor palpite, na falta de uma prova mais contundente, para o fim dessa civilização, no século 7º, foi uma mudança climática. Décadas de chuvas intensas seguidas por secas avacalharam o frágil equilíbrio ecológico local.

O arqueólogo Steve Bourget, em depoimento ao livro do British Museum, disse: "Mochica vai acabar se tornando um nome igual a maia, inca ou asteca. Vai se tornar parte da herança mundial".

As estátuas "escandalosas" de Moche estão aí para confirmar.

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