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Antes de Rosa Parks, heroína negra enfrentou parque de diversões racista
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42º05'N, 83º07'O
Bois Blanc
Amherstburg, Ontário, Canadá
Hoje, Bois Blanc é uma pacata ilha canadense, pertinho de Detroit, com belas mansões ajardinadas, marinas e restaurantes. Mas ela é um registro da história agitada da fronteira do Canadá com os Estados Unidos, e as ruínas de um centenário parque de diversões não deixam dúvidas.
Gostamos de parques abandonados ou que viveram seu auge há muito tempo. Já falei aqui de alguns do tipo, como o do Popeye, em Malta, o finado Magic City, em Paris, ou os parques abandonados no meio da Disney, em Orlando.
O antigo parque de Bois Blanc, ou Boblo, como a ilha é mais conhecida, tem o charme da virada do século 20 e o peso de ter testemunhado, mais de uma vez, o capítulo mais nefasto da história das Américas. É um parque em uma ilha, mas a ilha não se resume a ele.
Guerra por território, guerra por direitos
Em princípios do século 18, esse pedacinho de terra no Rio Detroit integrava a Rota Sauk, uma rede de caminhos indígenas que levava até o moderno estado de Illinois e tinha um papel importante na comunicação entre os povos originários e os britânicos. A parceria se intensificou após a independência dos Estados Unidos, em 1776, nas décadas tumultuadas que se seguiram.
Alguns povos locais, como os shawnees, os sauks e os meskwakis, lutaram com os ingleses contra os americanos e seus aliados indígenas na Guerra de 1812. Tecumseh, um importante líder shawnee contrário à expansão americana, fez de Bois Blanc seu quartel-general. Ele chegou a conquistar Detroit, mas foi morto no ano seguinte.
A ilha voltou a ser cenário de guerra em 1838, durante a Batalha do Canadá Superior, fracassada rebelião em uma das províncias que formariam o Canadá independente, em 1867. Paralelamente a esses acontecimentos mais chamativos, havia outros, mais sutis — e importantes.
Bois Blanc, ou mais especificamente o Forte Malden, em frente à ilha, funcionou como uma "estação" da Underground Railroad, rede clandestina usada pelos escravizados que tentavam fugir dos estados escravagistas do sul dos EUA. Muitos dos que conseguiam chegar ao Canadá acabaram ficando de vez em Amherstburg, a cidade onde fica a ilha, mesmo após a abolição.
É uma das tantas histórias reais dessa rede, que nos últimos anos ficou mais famosa graças ao livro de Colson Whitehead (2016) e à minissérie de Barry Jenkins (2021), ambos premiados e badalados (tem no Prime Video, assista, faz favor).
Um século mais tarde, a população negra voltou a crescer, dessa vez no lado americano da fronteira. Isso desencadeou um importante e pouco conhecido episódio da luta por direitos civis.
Na década de 1940, Detroit tinha um gueto, o Black Bottom, que vivia um boom industrial provocado pelos acontecimentos do outro lado do Atlântico. A cidade já era conhecida por suas fábricas de automóveis, e essa vocação a levou a ser reconhecida como o "arsenal da democracia".
Não só as fábricas de carros, mas estaleiros, farmacêuticas e indústrias de ferramentas passaram a produzir jipes, tanques, bombardeiros, armas, munição, capacetes, medicamentos e muitos outros utensílios para o esforço de guerra. As unidades da Chrysler, Ford e General Motors em Detroit viraram fábricas dedicadas a derrotar Hitler. Em 1944, a Ford fazia um B-24 por hora. Metade dos tanques americanos saiu da planta da Chrysler.
Para fazer essas linhas de montagem girarem, mais e mais trabalhadores, brancos e negros, mas quase sempre pobres e do sul, migraram para Detroit. Black Bottom ficou superpovoado, não havia habitação para tanta gente, abusos policiais ficaram mais frequentes.
O caldo entornou de vez nos lugares e momentos em que a segregação era mais evidente — e legalizada. A vida estava cada vez mais difícil e dura, e todos se dedicavam à produção frenética da indústria bélica. Então, cada vez mais, os negros se recusavam a respeitar as medidas que os excluíram das pequenas coisas boas da vida na cidade: piscinas públicas, ringues de patinação, festas de rua e, claro, parques de diversão.
Alguns desses lugares, para tentar amenizar, à sua maneira, a situação, passaram a liberar a entrada de negros em datas específicas. Em geral, em dias menos favoráveis, fora de temporada.
"A Rosa Parks de Detroit"
Em 21 de junho de 1945, Sarah Elizabeth Ray integrava um grupo de estudantes que havia concluído um curso de secretariado e decidiu comemorar no Parque de Boblo Island. Inaugurado em 1898, ele era um ponto tradicional de entretenimento na região.
O parque tinha três montanhas-russas, roda-gigante, carrossel, um enorme salão de bailes para 5 mil pessoas, patrocinado por Henry Ford, e um dos maiores orquestriões do mundo. Orquestrião é um instrumento autômato que emula os sons de uma orquestra, um típico exemplo da charmosa mistura de entretenimento e tecnologia do século 19. O de Boblo tinha quase 5 metros de altura e 419 tubos, o que devia encantar muita gente.
Sarah pagou o bilhete e subiu em um dos dois barcos a vapor que faziam a rota regular de quase 30 quilômetros entre o centro de Detroit e a ilha. Mas ela não chegou a entrar no parque.
A empresa dona dos navios não transportava, segundo suas normas, "pessoas desordeiras, barulhentas e de cor". Isso em um estado do norte, Michigan, que tinha algumas leis mais avançadas que os do sul no quesito direitos civis.
Desde 1885 a discriminação racial em locais públicos era proibida. "Mas a segregação recreativa era uma realidade nacional", segundo uma reportagem da revista "The Progressive".
Única negra em seu grupo, Sarah foi convidada a se retirar da embarcação. Ela se recusou, mas percebeu que seria removida à força caso resistisse. Constrangida, foi escoltada por dois funcionários para fora do navio. Anotou os nomes deles e recusou o reembolso de 85 centavos de dólar pela passagem.
Sarah, então, contatou o escritório da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), que entrou com um processo. Uma intensa batalha judicial teve início.
A Boblo Excursion Company, proprietária dos navios e do parque, era uma empresa americana. Mas o parque ficava em Ontário, não no Michigan, então a lei dos EUA não se aplicava, argumentava a defesa.
Boblo não era um parque desprezível de interior, mas um importante centro de lazer, comparado a Coney Island, em Nova York. E era um centro de entretenimento que tinha metas comerciais racistas, como era comum na época.
Em 1935, a empresa reportou a política de "homogeneidade racial" em seu relatório anual, alegando, orgulhosa, que assegurava a seus clientes que sabia lidar com "o problema negro". Ela tratava a questão como um diferencial de mercado, para que os frequentadores brancos ficassem tranquilos e não procurassem diversão em outros lugares.
O caso foi parar na Suprema Corte, que decidiu a favor de Ray em 1948. Bois Blanc precisou se adaptar aos novos tempos. Em vez de um parque racista, passou a ser uma opção de entretenimento viável para a crescente população negra da região de Detroit.
Dez anos antes de Rosa Parks se recusar a ceder seu lugar a um homem branco em um ônibus, Sarah Elizabeth Ray simbolizou a luta pacífica por direitos civis no norte dos EUA. Ela se tornou uma importante ativista, mas morreu em 2006 praticamente esquecida dos livros de história.
A direção do parque viu na prática que o novo público não espantou o tradicional. Boblo seguiu ativo por décadas, até que a lenta decadência o consumiu por inteiro. Em 1993, ele fechou as portas, após 95 anos de diversão.
Os dois navios que transportavam o público, Columbia e Ste. Claire, passaram anos encostados, apodrecendo em uma marina. Em 2014, apareceram em "Transformers: A Era da Extinção", um dos piores dos robozões.
Não bastasse figurar em um filme ruim até mesmo para os padrões do diretor Michael Bay, em 2018 um incêndio devorou o Ste. Claire. Ele ainda aguarda um possível restauro.
Hoje, quem passeia na ilha pode ouvir entre os bosques o tilintar da música mecânica e os ecos das danças de salão e dos brinquedos em movimento em domingos que se perderam no passado. Um navio abandonado reduzido a uma carcaça queimada só o deixa ainda mais fantasmagórico.
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