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O que as cabras trepadas em árvores e o famoso óleo de argan têm em comum?
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31º32'N, 9º22'O
El Hanchane
Essaouira, Marrakech-Safi, Marrocos
Para muitos, é daquelas coisas diferentonas que você precisa fazer e depois contar para todo mundo como foi. Para outros, é uma esquisitice com boas doses de experiência pega-turista, com o agravante de envolver maus tratos aos animais.
Sem dúvida, os bodes e cabras trepadores de árvores do Marrocos são algo único. Sua história é complexa. Envolve cultura, economia e um delicado equilíbrio ecológico que reflete o momento que o país está vivendo.
São bichos ágeis. Podem, sim, subir em árvores e se equilibrar em encostas perigosas de montanhas. Fazem isso de maneira natural. No Marrocos, o que atrai as cabras a desafiar a gravidade é o argão, fruto da argânia, planta endêmica do sudoeste semidesértico do país. Elas escalam as árvores e lá ficam mastigando as polpudas frutas.
No início dos anos 2000, alguns camponeses sentiram o faro de oportunidade e começaram a treinar seus animais para subir com mais frequência nas argânias, deslumbrar os turistas e render uns trocados a mais. Deu certo.
O treinamento varia. Podar as árvores para facilitar e encorajar as cabras é uma tática. Outra envolve atrair os animais com a fruta e usar gravetos para guiá-los.
Tem quem prefira amarrar os filhotes à argânia para ajudar na hora das fotos obrigatórias dos turistas. Afinal, quantas selfies uma cabra bebê pendurada em uma árvore rendem?
Alguns criadores simplesmente pegam os bichos e os colocam nos galhos, sem se preocupar em treiná-los. Eles pulam para o chão, os homens os agarram e recolocam nas árvores. Aí começam os problemas.
Abusos
Entidades protetoras de animais condenam a prática porque amarrar filhotes ou carregá-los de um galho para outro, forçando-os a ficar lá, não é natural. Eles precisam se equilibrar, sem água, sem sombra, no calorão marroquino.
O que era um curioso fenômeno da natureza vira um espetáculo artificial. Um show com hora certa para acontecer, em geral entre o fim da manhã e o meio da tarde, para pegar um fluxo maior de turistas no belo Vale do Souss ou no caminho entre Marrakech e Essaouira.
São poucas horas, os criadores dos animais argumentam. Mas são as horas mais quentes do dia.
Os motoristas param, descem do carro, brincam, tiram fotos e deixam, às vezes, gorjetas tão polpudas quanto o argão. Isso criou uma fonte de renda extra substancial.
Então veio o combo de adversidades, porque desgraça grande nunca vem sozinha. Uma seca brutal, a pior em décadas, atingiu a região de Marrakech-Safi.
Fazendeiros perdiam safras inteiras e não viam alternativas a não ser pegar suas cabras e pendurá-las nas árvores, na esperança de fazer algum dinheiro com o turismo. Um deles contou à "National Geographic" que começou a prática em 2019, após perder toda a plantação de trigo.
Em dias bons, pelo menos dez carros paravam para fotografar os bichos, deixando um total, em gorjetas, de US$ 20 (cerca de R$ 107). O dinheiro o ajudava a sustentar a família e os animais (cinco filhos, duas ovelhas e um burro, fora os bodes e cabras).
No começo de março de 2020, o primeiro caso de covid-19 foi confirmado no Marrocos. O país se fechou em quarentena, como o resto do mundo, e o turismo hibernou.
Mal havia dinheiro para alimentar os filhos, que dirá os animais. Das 13 cabras do camponês, só uma sobreviveu. Todas as outras morreram de fome. Histórias do tipo se repetiam na região.
Em outros tempos, elas teriam comida à vontade. Mas os pastos secaram e agora muitas dependem dos humanos para lhes comprar comida.
A reabertura do país, no começo do ano, trouxe os turistas de volta. Mas a situação ainda é delicada, porque as cabras são só a parte mais exuberante e fanfarrona de uma importante economia marroquina.
Equilíbrio delicado
O argão é uma fruta versátil, cujo óleo é usado na gastronomia e na indústria da beleza, que adotou seu nome em inglês (óbvio), argan. Em meados da década passada, o produto movimentava US$ 6,5 milhões por ano.
O óleo é obtido por meio da prensagem das sementes. Não é fácil colher as frutas no alto de uma árvore que pode chegar a 10 metros de altura, então quem cumpre a função? Adivinhou.
As cabras escalam a argânia à procura das frutas. Elas não digerem os caroços pequenos, que passam inteiros pelo trato intestinal e são colhidos no chão pelos camponeses.
Com os caroços maiores, não tem jeito. São quebrados, ruminados e cuspidos em pedacinhos que se espalham no solo. Dessa forma, os animais ajudam na disseminação de novas argânias.
Seria bom para todos, mas até certo ponto. Se há muitos caprinos em uma única área, eles acabam comendo folhas e mudas em excesso. Essa árvore leva até 15 anos para atingir a maturidade e produzir frutos, então atrapalhar sua reprodução, especialmente durante as secas, é um problemão para renovar os pomares, lembra uma reportagem da rede americana NPR.
A crise econômica provocada pela combinação de pandemia e seca levou muitos camponeses, desesperados, a pendurar cada vez mais cabras nas árvores. O desequilíbrio passou a reinar.
O que antes era um ciclo econômico natural e virtuoso acabou ruim para os animais, para as árvores e, no fim, para os humanos que dependem deles. É um problema muito mais complexo do que apenas apontar dedos e denunciar maus tratos de bichinhos.
Em todo caso, as cabras nas árvores acabaram virando uma marca local. Um exemplo contemporâneo de como uma presença forçada em um ambiente estranho pode criar algo novo e influenciar o entorno.
Foi assim que surgiu Essaouira, a bela cidade costeira que serve de base para os turistas à procura dos bodes voadores. Ela foi encomendada em meados do século 18 pelo rei Mohammed 3º a um engenheiro francês, que usou mão de obra conterrânea na labuta.
Essaouira foi erguida por franceses cristãos, que viraram prisioneiros após uma fracassada tentativa de invasão. Patrimônio da humanidade, é uma cidade fortificada que mistura engenharia militar europeia com arquitetura islâmica do Norte da África.
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