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Hotel 'amaldiçoado' do Elvis apresentou Havaí ao mundo, mas teve triste fim
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22º03'N, 159º20'O
Resort Coco Palms
Kauai, Havaí, Estados Unidos
Desinteressante, sem sentido, bobinho e inofensivo. Assim a crítica recebeu, em 1961, o filme "Blue Hawaii", lançado no Brasil como "Feitiço Havaiano". Um dos sucessos do cinema naquele ano, a comédia foi o primeiro dos três longas que Elvis Presley fez no arquipélago.
O longa até que envelheceu bem. "É uma das atuações mais insinuantes de Elvis, em um de seus filmes mais desinteressantemente agradáveis", escreveu, dia desses, na esteira da cinebiografia em cartaz, a "Variety". A revista especializada o considerou o quarto melhor dos 33 filmes estrelados pelo cantor.
A relevância de "Feitiço Havaiano" vai muito além dos talentos artísticos de Elvis, porque ajudou a moldar a imagem do Havaí para o mundo. Justamente uma imagem muitas vezes fictícia e cinematográfica.
Em todo caso, divulgou as ilhas. "O filme faz muito pelo paraíso do Pacífico", disse o crítico do "Los Angeles Times" 61 anos atrás. "Mostra suas ondas espumosas, as palmeiras, os luaus e alguns hotéis luxuosos."
Boa parte da comédia foi gravada no Coco Palms, hotel que por muito tempo foi sinônimo do glamour hollywoodiano em sua versão havaiana. Mas, ao longo de sua história, o Coco Palms foi, e é, mais que isso. É um testemunho da complicada relação do Havaí com os Estados Unidos - e de sua delicada situação na natureza.
Reino perdido
No começo do século 19, o Havaí era um jovem reino. A maior ilha do arquipélago, Havaí, conquistara todas as outras e as unificara a partir de 1795. A orgulhosa e tradicional ilha de Kauai foi uma das últimas a se juntar, em 1810.
Deborah Kapule, a última rainha de Kauai antes da unificação, tinha uma casa na ilha, reconhecida por suas qualidades de hospedagem. Quem nos diz é James Jarvis, historiador e viajante que explorou o Havaí naquela época. Do alto da Cachoeira de Wailua, próxima à casa, ele escreveu: "Kapule vive em um belo local que mais parece um parque cenográfico do que um trabalho da natureza."
No fim da vida, Kapule recebeu missionários cristãos na casa. Após sua morte, em 1853, o local passou por algumas mãos, mas logo se deteriorou.
O Havaí como um todo também mudou de mãos. Em plena expansão imperialista, os Estados Unidos, nova potência do globo, anexaram as ilhas em 1898, cinco anos após apoiarem um golpe que derrubou a monarquia.
O tempo passou, mas a vocação do local se manteve. No começo da década de 1950, havia ali uma pequena hospedaria que, em 1953, deu lugar à primeira versão do Coco Palms.
Era um hotel com 24 quartos e somente cinco empregados. Fez sucesso o suficiente para, três anos depois, ter se convertido em um complexo com 82 quartos e chalés de frente para o mar, emoldurados por mais de 2 mil coqueiros, herança de uma antiga fazenda que funcionava ali.
Os jantares temáticos do Coco Palms, com shows de música polinésia, fogueiras e danças, se tornaram um padrão que se espraiou por outros hotéis e virou uma marca registrada de qualquer férias no Havaí a partir de então. No livro "Kauai: 100 Years in Postcards" ("Kauai: 100 anos em cartões postais", sem edição brasileira), o autor Stormy Cozad explica a influência.
Havaianos em trajes típicos sopravam conchas usadas como trombetas e tocavam tambores, enquanto um deles corria o coqueiral acendendo as tochas até que toda a lagoa estivesse iluminada. Segundo o pesquisador, a cerimônia virou sinônimo do Coco Palms, mas não era algo típico do Havaí. Era apenas uma forma teatral para convidar os hóspedes para o jantar, usando alguns elementos da cultura havaiana.
Os turistas comiam, bebiam, ouviam histórias sob o luar, assistiam às danças, enquanto um porco assava cerimoniosamente na fogueira. Você pode jamais ter ido ao Havaí, mas sabe que qualquer viagem para lá tem essa cara.
Isso começou no Coco Palms, e se espalhou graças aos filmes que, já a partir de 1953, começaram a ser rodados no hotel. Não era qualquer tranqueira de baixo orçamento. O primeiro deles, "A Mulher de Satã", foi estrelado por uma das maiores divas de todos os tempos, Rita Hayworth.
Quando o personagem de Elvis se casa na lagoa do Coco Palms, em "Feitiço Havaiano", o hotel já era um sucesso, desejado por todo mundo que quisesse um casamento à moda havaiana. Mas o tempo passou, como sempre.
Os problemas se empilham
Em 1981, Grace Buscher, a visionária que transformou aquela hospedaria simples em um dos maiores cartões de visita de um destino turístico que começava a se tornar popular, se aposentou. O Coco Palms, agora um resort de mais de 400 quartos, seguiria sem ela. Em 1985, o hotel foi vendido e boa parte dos funcionários dos tempos áureos se aposentou.
Em 11 de setembro de 1992, o furacão Iniki atingiu o hotel com tudo. O Coco Palms havia resistido a outras tempestades e furacões, mas dessa vez os ventos de 230 km/h foram devastadores. O hotel fechou as portas de vez.
Mesmo impossibilitados de se hospedarem, muitos turistas seguiram visitando o Coco Palms, já que ele era destino garantido nas excursões que passam pelos pontos cinematográficos do Havaí. Dessa forma, ele continuou sendo atração turística, ainda que abandonado.
Em 2013, um grupo comprou o hotel e estimou os custos da reconstrução em mais de US$ 100 milhões. Para piorar as coisas, um incêndio atingiu a estrutura no ano seguinte. Com problemas se acumulando, o plano de reinauguração voltou para a gaveta.
Em 2016, o terreno foi ocupado. Noa Mau-Espirito e Kamuela Kapule Kamehameha, alegando descender diretamente da rainha Kapule e do rei Kaumuali'i, passaram a viver em um pedaço da área do hotel. Limparam o terreno, cultivaram plantas tradicionais e chamaram atenção para uma questão sensível da história do Havaí sob domínio americano: o direito à terra.
Antes da chegada dos europeus, possuir um terreno era um conceito inexistente no Havaí. Terra era algo coletivo. Em meados do século 19, isso começou a mudar, com uma divisão de terras entre rei, governo e povo. Uma lei de 1850 permitia que os havaianos reivindicassem o título das terras que eles cultivavam.
Porém, hoje os havaianos detêm menos de 1% das propriedades no estado. A explosão do turismo e a procura de estrelas de Hollywood, astros da música, barões da indústria e outros tipos de multimilionários para construir casas de férias nas ilhas fez os preços dispararem ao longo das décadas. Isso é mais nítido em Kauai, com sua natureza bruta, cujas montanhas esplendorosas aparecem em sucessos da telona como "Jurassic Park" e "Piratas do Caribe".
Pouco após os descendentes de Deborah Kapule ocuparem o Coco Palms, uma casa estimada em US$ 100 milhões, também em Kauai, entrou na mira dos protestos. Seu proprietário, é claro, não era havaiano, mas um nova-iorquino que fez fama e fortuna na Baía de San Francisco chamado Mark Zuckerberg.
O dono do Facebook cercou a propriedade com um muro de mais de um quilômetro de extensão e bloqueou o acesso à praia. Em sua rede social, ele postou que "havia se apaixonado pelo lugar e que pretendia fincar raízes e participar da comunidade."
Bonito. Mas não colou muito. "Para nós, nativos havaianos, a terra é um ancestral. Você não vende a sua avó", declarou ao "The Guardian", à época, Kapua Sproat, professor de direito na Universidade do Havaí. "Essa é a cara do neocolonialismo."
No ano passado, um leilão de execução hipotecária não atraiu investidores para o Coco Palms. Manifestantes protestaram contra a tentativa de venda do território que consideram sagrado.
Hoje, você pode conhecer o esqueleto perdido entre o mato e o mar em excursões dedicadas. O hotel pode ter virado lembrança de cartão postal, mas a memória ancestral de Kauai segue viva.
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