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Metrô e arqueologia: as lições de outras cidades que São Paulo podia seguir

Impacto da obra da futura estação Vai-Vai Saracura no bairro do Bexiga - Inês Bonduki/UOL
Impacto da obra da futura estação Vai-Vai Saracura no bairro do Bexiga Imagem: Inês Bonduki/UOL

Colunista de Nossa

07/08/2022 04h00

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23º33'S, 46º38'O
Saracura, Bixiga
São Paulo, São Paulo

Dez anos atrás, a Linha 6 do metrô paulistano, cujas obras estavam no comecinho, era o metrô da gente diferenciada. É que a linha, projetada para ligar o noroeste da capital paulista à região central, terá estações em bairros nobres, e a construção de uma delas, em Higienópolis, mobilizou um abaixo-assinado de vizinhos, em 2010. Escandalizados, não queriam saber de metrô em suas ruas chiques.

Hoje, a polêmica da linha 6 não está mais (ou somente) acima da superfície, mas abaixo dela. Nove sítios arqueológicos foram descobertos nas obras, e um deles tem feito barulho na internet, porque se trata, segundo arqueólogos, do antigo quilombo Saracura, no Bixiga.

Saracura foi uma das grandes aglomerações de resistência negra na São Paulo do século 19 e um dos berços do samba de bumbo e do Carnaval na cidade. O "Correio Paulistano", em 1907, o chamou de "um pedaço da África".

O samba de roda e, depois, o cordão carnavalesco se tornaram uma expressão cultural da área. Provavelmente, do time de futebol local, o Cai-Cai, tenha surgido a base do que viria a ser a escola de samba Vai-Vai, fundada em 1930 e maior campeã do Carnaval paulistano.

Por décadas a quadra da escola funcionou ali. Justo onde será a futura estação 14-Bis.

Mapa de 1913 - Reprodução - Reprodução
Mapa de 1913
Imagem: Reprodução

As peças de cerâmica e vidro, encontradas por uma empresa especializada, contratada pela concessionária que está construindo a linha, dispararam um movimento que luta por reconhecimento e visibilidade. Não que a existência do quilombo fosse desconhecida, mas a descoberta das peças levantou um alerta para um possível novo episódio de apagamento de uma população marginalizada e uma oportunidade para deixar a metrópole um pouquinho mais humana e, seu metrô, mais interessante.

Pouca gente sabe que o Bixiga, área turística, tradicional, famosa pela colonização italiana, é também um bairro negro. A futura estação, e um eventual memorial ou algo do tipo, podem mudar essa imagem.

"A região da Saracura, além de local de moradia, se torna referência para a identidade afro-paulistana e reduto permanente de grandes festas da Escola de Samba Vai-Vai. Ela se constituiu como paisagem urbana e patrimônio afro-brasileiro do município de São Paulo", escreveu o arqueólogo Alessandro Luís Lopes de Lima em um artigo de 2020 na revista "Argumentos", da Universidade Estadual de Montes Claros (MG).

Por isso, um movimento defende a preservação dos achados e a mudança do nome da estação para Saracura/Vai-Vai. O 14-Bis e Santos Dumont, convenhamos, já têm muitas homenagens Brasil afora — e justificadas, é claro, não me entenda mal.

Outros oito vestígios arqueológicos foram descobertos no ano passado ao longo dos 15 quilômetros da linha. Os objetos — cerâmicas, louças, vidros etc. — remetem ao início da industrialização de São Paulo, no século 19. Isso só evidencia a riqueza arqueológica de uma cidade que teima em ignorar o próprio passado.

Ruínas de metrô

Não é novidade na lenta história do transporte paulistano. Nas obras de reestruturação do Largo da Batata, em Pinheiros, em 2013, parte do antigo trilho de bondes, instalado em 1909, foi preservada. A ideia era colocar um bonde lá, explicar essa história.

Cadê? Quem passa pelo local hoje só vê o naco de trilho, sem nenhuma plaquinha para contextualizar. Melhor beber nos botecos em frente.

Em Pinheiros, durante as obras do metrô, a descoberta de louças de pontos diferentes da Europa mostraram a vocação comercial do bairro mais antigo da metrópole. Mas você não vê isso quando pega a Linha Amarela.

Grandes obras públicas do tipo são uma ótima oportunidade para mostrar às pessoas, no dia a dia, que elas fazem parte de uma história de séculos e séculos, que o chão que elas pisam é o mesmo de colonizadores, exploradores, escravizados, aventureiros e toda a massa que constituía a vida urbana de outros tempos.

O metrô de Roma é o caso mais emblemático, com objetos expostos nas estações que passam uma mensagem clara. "Ei, nosso metrô pode ser pequeno, mas tem motivo: olha essa fartura de história que existe debaixo dos nossos pés!" A cada pequeno passo de expansão, descobrem mais coisas. Em 2018, acharam uma casa, com pátio e tudo.

Em Istambul, as obras sob o Bósforo desvendaram um navio naufragado do século 11. Ele, ou pelo menos partes dele, ficará em exposição na futura estação. Em Atenas, as linhas construídas para as Olimpíadas de 2004 revelaram 30 mil artefatos no subsolo. Muitos estão à vista dos usuários do metrô hoje. Na Cidade do México, há uma pequena pirâmide asteca no meio de uma estação.

Escavações para construção de linha de metrô em Instambul, na Turquia - Mehmet Eser/Anadolu Agency via Getty Images - Mehmet Eser/Anadolu Agency via Getty Images
Escavações para construção de linha de metrô em Instambul, na Turquia
Imagem: Mehmet Eser/Anadolu Agency via Getty Images

Tudo bem, a gente sabe, São Paulo nunca foi capital de império ou um centro cultural e econômico como essas metrópoles. Longe disso. Até os anos 1870, São Paulo não se destacava nem mesmo dentro da então província de São Paulo — Santos e Campinas tinham população e relevância semelhantes.

Mas toda história importa, especialmente a nossa. Não precisa ser um país rico para preservar a herança arqueológica que os túneis de metrôs escancaram. Argel, a capital da Argélia, vai expor seu passado romano, bizantino, otomano e francês em uma nova estação. Sófia, na Bulgária, também exibe ruínas pré-históricas e romanas.

Ruínas romanas em Sofia, na Bulgária - AFP PHOTO / NIKOLAY DOYCHINOV - AFP PHOTO / NIKOLAY DOYCHINOV
Ruínas romanas em Sofia, na Bulgária
Imagem: AFP PHOTO / NIKOLAY DOYCHINOV

Quando os poderes público e privado escutam a ciência, a cidade ganha. A expansão da linha Jubilee, na capital britânica, foi acompanhada desde o princípio pelo Museu de Arqueologia de Londres, o que não só garantiu a preservação correta dos artefatos descobertos como preveniu atrasos desnecessários na obra, segundo James Drummond-Murray no livro "The Big Dig: Archaeology and the Jubilee Line Extension" (sem edição brasileira).

Tal parceria desde o início dos trabalhos também rendeu frutos em Viena. O trem metropolitano já existia nos tempos austro-húngaros, mas o metrô subterrâneo (U-bahn) só foi inaugurado em 1976, dois anos depois do de São Paulo. Diferença crucial é que a construção das linhas 1 e 2 na capital paulista não teve nenhum acompanhamento do tipo — imagine o que pode ter se perdido.

Já na Áustria, arqueólogos acompanharam todo o processo, fizeram dezenas de descobertas importantes e colaboraram com os engenheiros ao alertar sobre obstáculos no solo, o que diminui chances de atraso. Além disso, propiciaram belezas que os turistas que andam de metrô e, mais importante, o cidadão vienense, podem vislumbrar todo dia.

Na estação que dá acesso à Catedral de Santo Estêvão (Stephansdom), um dos marcos mais conhecidos de Viena, fica uma capela do começo do século 13. A cripta fica debaixo da Stephansplatz, a praça da catedral, e serve como uma espécie de aquecimento para quem vai visitá-la.

Capela Virgilius, com uma cruz bizantina, logo abaixo da Catedral de Santo Estêvão de Viena, na Áustria - bwmarchitects  - bwmarchitects
Capela Virgilius, com uma cruz bizantina, logo abaixo da Catedral de Santo Estêvão de Viena, na Áustria
Imagem: bwmarchitects

São Paulo poderia ter atrações do tipo. Ah, faltam peças históricas relevantes? Não precisa tratar só de culturas antigas. O metrô de Los Angeles, apesar de não exibi-las ao público, mostrou-se um tesouro para paleontólogos durante a construção, com a descoberta de 2 mil fósseis de até 16 milhões de anos.

Idem em Madri. Mastodontes, tigres-dentes-de-sabre e outros animais pré-históricos incrementaram o Museu Arqueológico Regional, enquanto réplicas ficaram expostas na estação onde foram encontrados.

Em São Paulo, enquanto isso, estações mudam de nome por causa de patrocinador, inspirado no metrô de Hong Kong, que parece que faz uma boa grana com isso. Mas, adivinhe só, no ano passado Hong Kong inaugurou uma nova linha e, também, exibiu, em uma estação, artefatos chineses descobertos na construção, como vasos, queimadores de incenso e até dados de cerâmica.

A futura estação 14-Bis, ou Saracura/Vai-Vai, está prevista para 2025, o que significa que ela só deve ser entregue na próxima década. Até lá dá para mudar bastante coisa. A começar por essa sina de apagamento histórico.

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