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REPORTAGEM

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Castigo de Deus? Cidade 'imoral' de piratas sumiu do mapa após terremoto

Pintura mostra como teria sido a ação de religiosos durante a destruição de Port Royal - WikiCommons
Pintura mostra como teria sido a ação de religiosos durante a destruição de Port Royal Imagem: WikiCommons

Colunista do UOL

28/08/2022 04h00

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17º56'N, 76º50'O
Port Royal
Kingston, Kingston and Saint Andrew, Jamaica

Este é um trecho de uma carta escrita em 28 de junho de 1692 pelo reverendo Emmanuel Heath, reitor da igreja de São Paulo, em Port Royal, Jamaica:

Desde aquele dia fatal, o mais terrível que já vi em minha vida, tenho vivido a bordo de um navio, pois os tremores da terra voltam de vez em quando. Ontem tivemos um muito grande, mas parece menos terrível a bordo do navio do que em terra firme, mas eu me aventurei a ir a Port Royal não menos de três vezes desde sua desolação, entre as casas destruídas, para enterrar os mortos, rezar com os doentes e batizar as crianças.

(...)

Domingo passado eu preguei entre eles em uma tenda - as casas que restaram estão tão comprometidas que eu não me atrevo a pregar nelas. O povo está muito feliz em me ver entre ele e chorou amargamente quando eu preguei. Eu espero que, por esse terrível julgamento, Deus os faça reformar suas vidas, pois não havia povo mais ímpio na face da terra. É uma visão triste ver todo esse porto, um dos mais belos que já vi, coberto de cadáveres de pessoas de todas as condições flutuando para cima e para baixo sem sepultura.

Vista de Port Royal e Kingston - Wellcome Images/WikiCommons - Wellcome Images/WikiCommons
Vista de Port Royal e do porto de Kingston
Imagem: Wellcome Images/WikiCommons

Três semanas antes, um terremoto havia devastado a cidade. Heath, traumatizado a ponto de ficar a bordo do navio ancorado o tempo todo, temendo ser engolido pela terra, rezava para que os sobreviventes mudassem de comportamento, após o "terrível julgamento" de Deus, como ele escreveu.

A certeza de que a ira divina caíra sobre a cidade por causa de seus moradores fazia sentido para os fiéis. Port Royal, até aquela fatídica manhã de 7 de junho, era a capital da pirataria no Caribe, um antro de jogatina, libertinagem e vícios. A Igreja a chamou de "cidade mais imoral da cristandade".

Piratalândia

Gravura mostra como seria Port Royal por volta de 1692 - WikiCommons - WikiCommons
Gravura mostra como seria Port Royal por volta de 1692
Imagem: WikiCommons

Se hoje os jamaicanos falam inglês, é porque os ingleses tomaram essa antiga colônia dos espanhóis, onde Cristóvão Colombo chegara em 1494 trazendo a sutileza paquidérmica da colonização. Em 1670, os britânicos assumiram o controle em caráter oficial, de olho na posição estratégica da ilha para os seus negócios nas Américas.

Construíram fortes e porto. Estimularam o comércio, tanto o legal como a pirataria. Corsários, espécie de piratas sancionados pelo Estado, chegaram aos borbotões para entrar, e lucrar, na guerra marítima entre ingleses e espanhóis pelo controle dos mares.

A posição de Port Royal, em uma baía protegida de uma ilha no meio do Caribe, próxima de Cuba e de Hispaniola, a meio caminho entre a península de Yucatán e a Venezuela, a tornou ponto de partida ideal para atacar as possessões espanholas que cercavam a Jamaica. Com isso, Port Royal se tornou a meca da pirataria.

Henry Morgan, um dos mais famosos corsários a serviço da Inglaterra - National Trust/Domínio Público - National Trust/Domínio Público
Henry Morgan, um dos mais famosos corsários a serviço da Inglaterra
Imagem: National Trust/Domínio Público

Henry Morgan, um dos mais famosos corsários a serviço da Inglaterra, comandou invasões a Cuba, Panamá e Venezuela. Ficou podre de rico, virou cavaleiro da Coroa e governador da Jamaica - o que dá uma amostra do quanto o rei estimulava a prática.

Port Royal, com os lucros da pirataria, tornou-se uma rica cidade, com sobrados, água encanada, tavernas e bordéis a dar com pau. Morgan morreu em 1688, inspirando, a partir de então, uma série de produtos baseados, ou apenas inspirados, em sua vida. De historinha do Pato Donald a marca de rum, ele estrelou dezenas de livros, filmes, músicas e videogames.

O horror

Gravura mostra destruição de terremoto em Port Royal - Rijksmuseum/Domínio Público - Rijksmuseum/Domínio Público
Gravura mostra destruição de terremoto em Port Royal
Imagem: Rijksmuseum/Domínio Público

Na manhã de 7 de junho de 1692, a terra tremeu. Segundo o relato do reitor Heath, o chão se abriu e engoliu pessoas e casas. O céu ficou vermelho, gêiseres cuspiam água violentamente. O mar virou uma enorme muralha que navegava com fúria em direção ao porto.

"No espaço de três minutos, Port Royal, a cidade mais bela de todas as plantations inglesas, o melhor mercado desta parte do mundo, excedendo em suas riquezas e abundante em todas as coisas boas, foi sacudida e despedaçada", escreveu Heath.

O terremoto, que teria sido de 7,5 na escala Richter, provocou um tsunami. Dezenas de milhares de pessoas morreram na catástrofe, que destruiu inclusive o cemitério onde Morgan estava enterrado. Seus restos mortais sumiram para sempre.

Boa parte da cidade afundou, engolida pelo mar e pela terra. Somente um dos quatro fortes resistiu.

Hoje, os cientistas acreditam que muito da destruição ocorreu porque o solo sofreu liquefação. Isso acontece quando um terremoto atinge um terreno arenoso, cheio de água, exercendo tamanha pressão que o chão se transforma em um tipo de areia movediça. É o que explica os relatos de prédios inteiros deslizando para debaixo d'água.

Tesouros naufragados

Uma das ruas destruídas de Port Royal, na Jamaica - Reprodução - Reprodução
Uma das ruas destruídas de Port Royal, na Jamaica
Imagem: Reprodução

Port Royal permaneceu esquecida debaixo da superfície por quase 300 anos, deixando o lugar vago para Kingston se tornar a principal cidade da Jamaica. Houve alguns processos de reconstrução, mas nada à altura do que era, ainda mais depois de outro terremoto, em 1907, destruir quase tudo de novo.

A partir da década de 1980, mergulhadores começaram a resgatar peças que recontam essa história. Porcelanas chinesas, talheres de estanho e outros objetos que denotam a riqueza em que aquelas pessoas viviam. Curiosamente, descobriram quantidades embriagantes de garrafas e barris. O rum rolava solto.

Quando encontraram um relógio produzido em Amsterdã, em 1686, puderam confirmar a hora exata do apocalipse. Os ponteiros pararam às 11h43.

Hoje, a Jamaica não ignora o potencial turístico de uma cidade que vive no imaginário de qualquer fã de histórias de pirata. Desde filmes da era de ouro de Hollywood à franquia "Piratas do Caribe", passando por livro de Michael Crichton e pelo jogo "Assassin's Creed IV: Black Flag", Port Royal é inspiração para tudo que é ambientação do tipo.

Em 2019, o local ganhou um píer flutuante para navios de cruzeiro. O primeiro deles chegou no começo de 2020, pouco antes do estouro da pandemia. Ainda há bastante a ser feito, mas dada a importância cultural e a proximidade de Kingston (meia horinha de carro), conhecer de perto o Forte Charles, o único que sobrou, e vislumbrar as ruínas submersas da "cidade imoral" poderá ficar mais interessante.

No ano passado, o primeiro-ministro da Jamaica, Andrew Holness, visitou Port Royal e reforçou o potencial inexplorado do turismo local. Ele anunciou planos para restaurar os prédios que não foram engolidos pelo mar, construir um museu e investir na divulgação. Fãs de Henry Morgan, preparem o butim.

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