Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
Por que uma pequena ilha do Caribe pode implodir o Império Britânico
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
17º00'N, 61º45'O
Docas de Nelson
Saint Paul, Antígua, Antígua e Barbuda
A morte da rainha Elizabeth 2ª reacendeu uma discussão antiga em diversos lugares, do Caribe à Australásia. Ainda faz sentido esses países distantes e independentes terem, como chefe de Estado, por mais meramente simbólico que o cargo seja seja, uma rainha ou rei aboletado lá em Londres?
Para muita gente, não. Não agora, neste momento. Ou nunca fez.
O primeiro governo a se manifestar nesse sentido foi o de Antígua e Barbuda. Dois dias após a morte de sua rainha, o primeiro-ministro, Gaston Browne, disse à TV que o país caribenho faria um referendo para decidir se permanece uma monarquia ou se vira uma república.
Ele fez o anúncio pouco após uma cerimônia confirmar que o príncipe Charles assumiria o reino de Antígua e Barbuda. Caía uma chuva tropical e fazia 30º C na capital, Saint John's, distante 6,5 mil quilômetros do Palácio de Buckingham.
Que país é esse?
O primeiro europeu de que se tem notícia a chegar à ilha de Antígua, nas Pequenas Antilhas, acima da costa da Venezuela, é a velha figura conhecida de sempre, Cristóvão Colombo. Os caraíbas viviam ali, mas acabaram dizimados ao longo dos séculos seguintes.
Os britânicos dominaram a ilha em 1632 e introduziram a cana-de-açúcar e o tabaco. Para o trabalho, mão de obra africana, fornecida pela vizinha Barbuda, onde havia uma fazenda com trabalhadores escravizados.
Em atlas e mapas antigos, vemos que essas ilhas já integraram a Federação das Ilhas Sotavento e a Federação das Índias Ocidentais. Nos anos 1960, Antígua e Barbuda ganhou autonomia parcial. Adquiriu independência em 1981, três meses após o casamento de seu atual monarca com a finada princesa Diana.
Mais de 300 anos de dominação britânica deixaram marcas culturais no arquipélago, como é de se imaginar. Uma das principais atrações turísticas do país, patrimônio da Unesco, são as Docas de Nelson, complexo que começou a ser erguido nos anos 1740 e que inclui marina, fortificações e outras construções navais em um ambiente de natureza borbotoante, com uma baía que ao mesmo tempo protegia de furacões e permitia monitorar os movimentos das potências rivais na vizinhança - Guadalupe, ainda hoje um departamento ultramarino da França, fica a apenas 60 km de Antígua.
Essa região é conhecida como enseada Inglesa. O nome das docas é uma homenagem ao Almirante Nelson, homem que a historiografia oficial britânica alçou à condição de mito por ter derrotado Napoleão, mas que, no Caribe, é visto há muito tempo como um representante das elites aristocráticas, conservadoras e escravagistas que controlaram essas ilhas.
O primeiro-ministro Browne enfatizou que o referendo não é um ato de hostilidade perante a monarquia, mas um passo final para completar o arco de independência do país. A presença de Lorde Nelson em um dos monumentos mais famosos de Antígua é só um dos tantos símbolos imperialistas que se acumulam nas ilhas. Mesmo que a república vire realidade, muitos desses ícones britânicos podem seguir de pé. Ou não.
Falei aqui na coluna, em 2020, que a remoção de uma estátua de Nelson no centro da capital de Barbados foi o grande marco que antecedeu a ruptura definitiva daquele país com o Reino Unido. Em 2021, Barbados seguiu o caminho já traçado por Guiana (1970), Trinidad e Tobago (1976) e Dominica (1978). Todas ex-colônias britânicas na América que formalizaram a independência e, alguns anos depois, viraram repúblicas.
Comunidade britânica ameaçada?
Hoje, além de Antígua e Barbuda, Austrália, Bahamas, Belize, Canadá, Granada, Ilhas Salomão, Jamaica, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, Santa Lúcia, São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas e Tuvalu são países independentes, com governos próprios, representações diplomáticas, cadeiras na ONU etc. Todos esses 14 países, além do Reino Unido, têm hoje o mesmo rei, Charles 3º (ou Carlos 3º, como chamaríamos antigamente).
Antígua e Barbuda não está sozinha nesse movimento de cogitar cortar os laços de vez enquanto os britânicos fazem a transição da coroa. Os governos de Bahamas, Belize e Jamaica também anunciaram que poderiam seguir esses passos. Sem contar que os movimentos pró-independência na Escócia e no País de Gales e o de reunificação da Irlanda do Norte (que faz parte do Reino Unido) com a Irlanda voltaram a ganhar força.
Segundo analistas, isso está acontecendo agora porque a morte da rainha trouxe a monarquia britânica e suas idiossincrasias e excentricidades para o centro da discussão. Nas últimas semanas, em qualquer mesa de bar você pode encontrar alguém com opinião formada sobre sistemas de governo. "Especialistas em monarquia" brotaram em tudo que é grupo de zap.
A longa lista de atrocidades perpetradas pelo Império Britânico voltou à tona. Quando Elizabeth 2ª assumiu, o mundo, e o seu reino, eram bem diferentes em 1952. Ela era rainha de sete países independentes aos 25 anos. Morreu aos 96 como chefe de Estado de 15.
Uma leitura desatenta dos números poderia levar a crer que a Inglaterra teria recuperado seus dias de superpotência. Só que não. Essa diferença mostra as ex-colônias que conquistaram a independência, mas mantiveram a monarquia, com um governador local representando a rainha.
Parte disso se explicava pelos laços mantidos pela Commonwealth, o grande clube formado pelo Reino Unido e ex-colônias espalhadas em todos os continentes. São 56 membros que promovem entre si desde acordos econômicos até intercâmbios culturais e esportivos.
Parte se explicava pelo reconhecido talento de Elizabeth 2ª em manter firmes os elos que constituem uma monarquia parlamentarista. Isso ao mesmo tempo em que conduzia um império colonialista à condição de reino pós-colonial.
Betinha era sagaz no assunto. Era mais rápida do que os políticos ingleses em aceitar a independência e acalentava governantes desses novos países com prêmios e títulos.
O primeiro primeiro-ministro das Ilhas Salomão, Peter Kenilorea, pertencia ao povo areare e nasceu em uma vila em meio às florestas tropicais de Malaita, a 15 mil quilômetros de Londres. Kenilorea ganhou da rainha o título de cavaleiro real britânico. Para ficar em um exemplo.
Parte, também, se explicava justamente por essa neutralidade apolítica da rainha. O que fazia dela uma personagem insossa, para uns, era o que mantinha a coroa forte, para outros.
Na prática, no dia a dia, nesses países distantes com problemas muito mais urgentes a tratar, Elizabeth 2ª tinha virado apenas uma velhinha simpática que aparecia no dinheiro e em órgãos públicos. A rainha da Inglaterra era só uma "rainha da Inglaterra".
A figura carismática de Elizabeth 2ª e a aparente sensação de imutabilidade de seu reinado de 70 anos deixaram o assunto de lado todo esse tempo. Agora, Antígua e Barbuda deve puxar a fila e tratar da relação com algo que, para muita gente, não tem nada de carismático, o Império Britânico.
Os outros Charles
Por mais que a família real e a monarquia tenham se modernizado no século 20, deixando para trás o semblante imperialista, seu passado escravocrata está escancarado em seus próprios nomes. O primeiro inglês que transportou trabalhadores escravizados em seu navio o fez sob aprovação da rainha Elizabeth 1ª.
Charles 1º (1600-49) concedeu licenças para a exploração da costa da África. Seu filho, Charles 2º (1630-85), participou da criação da Companhia Real Africana, empresa prolífica no tráfico de seres humanos escravizados. Segundo o banco de dados do site "Slave Voyages", em 60 anos ela transportou 187 mil pessoas da África para as Américas em seus navios negreiros.
As opiniões pessoais de Elizabeth 2ª eram um mistério. Não se sabe, com clareza, o que ela pensou sobre as grandes questões de seu tempo, do apartheid na ex-colônia África do Sul ao Brexit. "Na maioria dos casos, os observadores tiveram que recorrer à interpretação de seus chás para adivinhar sua posição", brincou um artigo do jornal "Washington Post".
Charles, por sua vez, é um personagem com muito mais opiniões declaradas, e sabe que vai ter que segurar a onda a partir de agora. Notório defensor de causas ambientais, já falou o que pensa sobre fast fashion, arquitetura tradicional inglesa, tomates orgânicos, cercas vivas... Em um documentário da BBC, lembra o artigo, ele foi questionado sobre as acusações de se intrometer em assuntos públicos. "Se é intromissão me preocupar com as cidades do interior, como fiz há 40 anos, e com o que estava acontecendo lá, as condições em que as pessoas viviam... Se isso é intromissão, estou orgulhoso", respondeu.
Elizabeth 2ª, por outro lado, nunca deu uma entrevista. O reinado mais longevo da história do país, que viu a popularização da televisão, das revistas e da internet, e ela jamais falou com uma repórter.
Já o novo rei, cheio das manias com pasta de dente, xiliquento com caneta que não funciona, dá mostras de que vai divertir a imprensa de celebridades. Mesmo que decida parar de dar entrevistas.
Sua personalidade, os sinais que tem dado de que pretende enxugar a monarquia e, mais importante, o desejo das antigas possessões d'além-mar que ainda mantinham sua mãe como chefe de Estado, podem apontar para o fim desses resquícios pós-coloniais do Império Britânico. Seria o fim das "monarquias das bananas".
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.