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O país que nunca teve uma eleição tem cemitério de tanques como atração
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15º19'N, 38º54'L
Cemitério de Tanques
Asmará, Maakel, Eritreia
A Eritreia jamais teve uma eleição federal. Essa dura realidade tem ligação muito próxima com uma das atrações, e símbolos nacionais, mais queridas desse país onde o turismo é raro: um cemitério de tanques.
Raro, mas podia não ser. A Eritreia tem seus segredos, como prédios coloniais e art déco da época da dominação italiana na capital, Asmará. Assawa, por sua vez, é uma cidade portuária com influências egípcias e turcas. Fora que o país tem um extenso litoral no Mar Vermelho - o Parque Nacional Marinho de Dahlak, no arquipélago homônimo, é desses lugares que nos fazem pensar como tem praia bonita nesse mundo.
Mas, pobre, conflituosa e com um governo isolacionista, a Eritreia é uma estranha desconhecida. Segundo o Banco Mundial, 142 mil turistas estrangeiros visitaram o país em 2016, data do último levantamento. É quase seis vezes menos do que recebeu o vizinho Sudão, que, vamos combinar, não é lá um destino comum.
Que país é esse?
A Eritreia fica no Chifre da África, na região que, na Antiguidade, era o domínio do Reino de Aksum, monarquia cristã que perdurou até o século 10º. Mais tarde, o país foi conquistado pelos otomanos e enfrentou uma longa decadência.
No fim do século 19, enquanto a vizinha Etiópia resistia às investidas, a Eritreia virou uma colônia italiana. O domínio durou até a Segunda Guerra Mundial, quando os ingleses derrotaram os fascistas e assumiram o comando. "Ingleses" é uma forma genérica de chamar por causa das insígnias em seus uniformes e de quem comandava o conflito, mas muitos soldados que bateram nos italianos eram de colônias como Sudão e Índia.
Em 1952, os britânicos saíram da área e a ONU aprovou a fusão de Eritreia e Etiópia em um único Estado. Não deu muito certo e, na década seguinte, os eritreus iniciaram a rebelião armada, ao passo que os etíopes anexaram a Eritreia como uma província.
Nos anos 1970, uma frente marxista liderou a guerra contra a Etiópia (cujo governo tinha apoio da União Soviética) e assumiu o controle do território. Era um conflito entre dois países de viés socialista, mas um tinha um exército patrocinado por uma superpotência, e o outro era formado por camponeses furiosos.
Em 1991, após 30 anos de guerra civil, 100 mil mortos e 350 mil refugiados, a Etiópia recolheu as armas. Em 1993, a Eritreia era um país independente, mais um dos tantos que o mundo ganhou naquela época.
Ao longo do conflito, as tropas etíopes escondiam seus veículos destruídos nos arredores de Asmará, pois sabiam que, se os eritreus os vissem, seu moral ganharia aquela bombada satisfatória para se impor ainda mais ao inimigo.
Vencedores da guerra, os eritreus trataram de recolher todos os equipamentos destruídos e abandonados que encontrassem. Assim, criaram seu cemitério de tanques, um monumento à improvável vitória e à luta pela independência.
Estranho cemitério
Você pode visitá-lo. É só pedir uma autorização ao ministério do turismo do país e mostrar o passaporte na entrada. O cemitério fica próximo a uma vizinhança chique, com museus, prédios do governo e embaixadas.
"Ao viajar pela Eritreia, você vê um monte de equipamentos militares enferrujados largados nas estradas. Não se surpreenda ao ver caminhões capotados ou crianças usando tanques como parquinhos", diz o blog "Unusual Traveler".
O lugar é coberto por centenas de veículos militares e carros normais detonados e empilhados. Tem até uma escada para avião.
Novos significados
Issaias Afewerki, líder da luta pela independência, tornou-se presidente em 1993 e desde então não saiu do cargo. A paz não durou muito, e em 1998 a Eritreia entrou em uma guerra de fronteira com a Etiópia, que causou outras 70 mil mortes.
Depois disso, o isolamento do país piorou índices de pobreza e desigualdade. A Eritreia cortou relações com vizinhos e com a comunidade internacional.
Em 2018, um novo acordo de paz trouxe esperança à região. Pela primeira vez em duas décadas, um avião comercial fez a rota Asmará-Adis-Abeba. Abiy Ahmed, primeiro-ministro etíope, ganhou o Nobel da Paz.
O prêmio logo se mostrou controverso, porque pouco depois as tropas da Etiópia atacaram a região do Tigré, que faz fronteira com a Eritreia. O Tigré é lar da minoria étnica cristã que governou a Etiópia por quase 30 anos. É uma região de grande importância histórica e arqueológica, onde, segundo fiéis, fica preservada a Arca da Aliança (falei sobre o assunto em outro texto na coluna).
Talvez o acordo de paz tenha saído porque Ahmed e Afewerki querem derrotar um inimigo em comum, a Frente de Libertação do Povo do Tigré. O historiador eritreu Tekeste Negash, professor na Universidade de Uppsala (Suécia), disse ao site "Atlas Obscura" que o acordo pode esconder também um plano de reunificação dos dois países. Para ele, isso pode ocorrer, porque existe um senso de identidade compartilhado entre Eritreia e Etiópia.
Na última década, a Eritreia reforçou a condição de um dos países mais repressivos do planeta. Não há liberdade de imprensa, de religião, de expressão. Dissidentes são presos e torturados.
O orgulho que emanava do cemitério de tanques, frente a tantas dificuldades, perdeu força. Caso a reunificação aconteça, ele pode perder significado de vez e voltar a ser apenas um ferro-velho.
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