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A cidade italiana que se livrou do fascismo para virar joia arquitetônica
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44º49'N, 11º53'L
Tresigallo
Ferrara, Emília-Romanha, Itália
Chamada de "a cidade metafísica", Tresigallo é objeto de estudo e admiração de urbanistas e historiadores. Ela não foi projetada por um arquiteto, mas por um político. Um importante líder fascista e ministro de Mussolini, mas que tramou contra o Duce e teve a cabeça colocada a prêmio. Tresigallo é única na Itália.
Localizada na província de Ferrara, no norte do país, Tresigallo, com menos de 5 mil habitantes, já teve dias mais agitados. A cidade é antiga, tem pelo menos 700 anos, mas foi só em 1935 que ela ganhou suas particularidades especiais.
Avenidas planejadas, prédios, praças, hotéis, restaurantes, academia de ginástica, estádio e muitas fábricas brotaram no que antes era um vilarejo largado em meio ao pântano, com cerca de 500 habitantes. Isso surgiu da mente de um homem chamado Edmondo Rossoni.
Rossoni conhecia bem o lugar - nasceu lá em 1884 e lá viveu seus primeiros anos. Tornou-se um líder sindicalista radical, foi preso, fugiu para os Estados Unidos e, de volta em 1921, conheceu o ascendente movimento fascista.
Na política, Rossoni usou a experiência que teve nos EUA para desacreditar tanto o capitalismo como o socialismo. Era um nacionalista fervoroso. "O internacionalismo não é nada mais que uma farsa, uma hipocrisia", declarou.
Ele se tornou líder dos chamados sindicatos fascistas. Como a Itália se tornou uma ditadura sob Benito Mussolini, esses sindicatos eram diferentes dos que havia em países democráticos. Em vez de organizações que agrupavam trabalhadores de um mesmo setor econômico, eles eram meros braços do governo, os únicos com permissão para participar das corporações organizadas pelo Estado. (())
Ou seja, esses sindicatos eram, na verdade, órgãos fascistas criados para substituir outras agremiações, fossem católicas ou socialistas, e impor a política ultranacionalista e centralizadora característica do regime. Eram programas de adequação e dominação.
Só que eles não atingiram o sucesso esperado. "Falharam em educar as massas" foi o argumento usado, explica a socióloga Simonetta Falasca-Zamponi em "Fascist Spectacle" ("Espetáculo fascista", sem edição brasileira).
Projeto urbanístico
Mesmo assim, Rossoni permaneceu nas altas rodas, ocupando cargos importantes no governo. Em 1935, foi nomeado ministro da agricultura e, secretamente, deu início ao plano de transformar sua Tresigallo natal em uma cidade-modelo.
Ela ganhou água encanada, uma casa de banho pública e estradas conectando-a a Ferrara e à costa. Rossoni mandou erguer escola, clube, salão de baile e um sanatório especializado no tratamento de tuberculose. Construiu um hotel para atrair industriais à cidade. Com esses esforços, Tresigallo se tornou um polo fabril e uma das maiores produtoras de celulose da Europa.
A população se multiplicou das habituais 500 para 9 mil. Tudo isso sem que Mussolini soubesse de nada.
Até que o Duce suspeitou, mandou um espião à Emília-Romanha e exigiu explicações do ministro. Rossoni contou que estava fazendo uma cidade-modelo, ideal para ser replicada por toda a Itália. Mussolini gostou do que ouviu e mandou seguir o jogo.
O problema é que isso ocorreu em 1939. No ano seguinte, de olho em anexar uma parte da França, conquistada pelos nazistas, Mussolini jogou a Itália na Segunda Guerra.
Assim como os planos de abocanhar um pedaço da França, que não deram em nada, o projeto de replicar a cidade dos sonhos fascista foi para a gaveta - e de lá não saiu. Em 1943, enquanto os Aliados davam início à conquista da Itália pelo sul, Rossoni apoiou a destituição de Mussolini. Hitler invadiu o país pelo norte, Mussolini recuperou parte do poder na efêmera República de Salò e condenou os traidores à morte.
Não havia mais clima algum para brincar de montar cidades utópicas. Rossoni fugiu para o Canadá e voltou em 1947, quando a guerra havia terminado, o fascismo estava derrotado e seu antigo líder comia manjericão pela raiz.
Ele morreu em 1965 e ganhou um funeral cheio de honrarias na cidade que havia transformado. Mas Tresigallo já estava em decadência: a população despencara para 3 mil.
Na década de 1980, ela começou a ser redescoberta por arquitetos, urbanistas, designers e historiadores. O contexto político favoreceu uma visão mais pragmática, segundo o arquiteto Davide Brugnatti e o historiador Giuseppe Muroni em um artigo na revista de arqueologia "Ex Novo".
"Como a esquerda governou a cidade em praticamente todos os últimos 80 anos, a atitude perante projetos de pesquisa e renovação não poderia ser nostálgica, e mais importância foi dada à forma como os edifícios restaurados poderiam servir como um trunfo para a comunidade", explicam. Quer dizer, não havia espaço político para uma nostalgia de extrema-direita. Não naquela época nem naquele lugar.
Para os pesquisadores, que vivem e trabalham na região, o que diferencia Tresigallo de outras obras da arquitetura fascista é que ela é mais "balanceada e não-monumental". É distante da propaganda de Mussolini, mantendo apenas os elementos austeros e funcionais do chamado racionalismo italiano. Em vez de largas avenidas e altas doses de solenidade e imponência, Tresigallo é uma cidade mais humanista.
Enquanto outros projetos utópicos do fascismo erguiam cidades em torno de fábricas ou de monumentos que glorificavam a figura de Mussolini, Tresigallo foi pensada nas pessoas. Só que as pessoas já não estavam mais ali como no pré-guerra.
As fábricas dificilmente vão reabrir, então o governo local e associações culturais ocupam esses lugares para darem outros usos - e novos significados - a eles. A academia é um exemplo claro. Ela era administrada pela Gioventù Italiana del Littorio, a organização juvenil fascista, que usava o local para bombardear a garotada de propaganda do governo. "Puxe ferro, saúde o Duce, a pátria, a família etc." Essas coisas.
Hoje, é um centro cultural com biblioteca pública e que oferece shows e exibições artísticas. A ideia é que as pessoas, as locais e os turistas, reconheçam a beleza da arquitetura, separando-a de sua carga passada.
É uma solução parecida com a encontrada em Bolzano, cidade do Tirol do Sul, nos Alpes. Até a Primeira Guerra Mundial, ela era austríaca e, portanto, tinha população majoritariamente não-italiana e que falava alemão quando Mussolini tomou o poder. Bolzano sofreu um processo forçado de italianização e ganhou uma pilha de monumentos fascistas, que, nas décadas seguintes viraram ponto de tensão entre as comunidades tirolesa e italiana.
"Se remover os monumentos, você remove as evidências e evita lidar com as camadas complexas da história e identidade que impulsionam essa disputa", disse o historiador Hannes Obermair à BBC. "Se mantiver os monumentos sem desafiá-los, você simplesmente normaliza a retórica fascista."
A solução foi manter a integridade artística e histórica, mas subverter a mensagem extremista. Em um monumento específico, explicitamente fascista, mas visto pelos italianos da região também como um memorial aos seus soldados mortos em combate, a cidade cobriu ícones fascistas, construiu um museu para explicar a conturbada história da região e fez um baixo-relevo com uma frase de Hannah Arendt que recontextualiza a obra. Dessa forma, valorizou a arquitetura, apagou a retórica lenga-lenga fascistoide e agradou às duas comunidades.
Tresigallo quer ser conhecida por mais gente. Em 2015, passou a integrar o Atrium, um grupo de 18 instituições (entre universidades, órgãos do governo e ongs) de países europeus com significativos exemplos de arquitetura totalitária, o que inclui não só a Itália fascista como também os regimes socialistas da Romênia e da ex-Iugoslávia, por exemplo.
Com a vitória da extrema-direita nas últimas eleições italianas, o neofascismo pode estar mais forte do que jamais esteve desde que o corpo de Mussolini foi exposto a uma multidão furiosa na praça Loreto, em Milão. Mas, por ora, Tresigallo não parece muito interessada no retorno das motociatas do ditador. Prefere as motos em campanhas publicitárias, como esta da Agusta.
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