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De Portugal à Bulgária: por que existem tantas 'pontes do diabo' na Europa?
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41º37'N, 25º06'L
Ponte do Diabo
Ardino, Kardzhali, Bulgária
A classificação Aarne-Thompson-Utter (ATU) é um sistema que categoriza contos folclóricos. Começou a ser desenvolvida pelo folclorista finlandês Antti Aarne em 1910, e é uma espécie de catálogo com alguns milhares de enredos básicos que serviram para a criação de histórias contadas de geração para geração.
Minha amiga Karin Hueck, em seu livro "O Lado Sombrio dos Contos de Fadas", chama o sistema de "uma imensa tabela periódica do folclore": "Ele funciona como uma grande taxonomia de fábulas, que confere um 'nome científico' para cada uma delas. Primeiro, analisa o que elas têm em comum - uma heroína bonita, um animal falante, uma moral parecida -, para depois inventar um título para cada uma delas."
Dessa forma, há contos de animais, religiosos, populares, anedotas etc. "Cinderela", por exemplo, é um conto popular, categoria "história da heroína perseguida". Seu código é 510A.
Já as entradas 1000 a 1199 são reservadas aos contos com gigantes e demônios. Da 1170 à 1199 ficam as histórias de almas salvas pelo diabo. Nessa subcategoria, o item 1191 trata das pontes do demônio.
Ou seja, existem tantas lendas de pontes associadas ao coisa-ruim que os estudiosos as catalogaram. Em geral, são pontes de pedra muito antigas, em arco, com uma arquitetura que impressionava as pessoas da época, a ponto de inspirarem lendas.
A maioria dessas pontes fica na Europa, continente que concentra o foco da catalogação do sistema ATU. Isso, por sua vez, é motivo de críticas, dada a limitação geográfica do tabelão.
Este site ligado à Universidade de Pittsburgh (Estados Unidos) enumera 16 lendas de pontes do diabo. Um levantamento feito pelos editores da Wikipédia contabilizou 96 pontes do tipo, a maioria na França. Mas há muito mais.
As lendas giram em torno da dificuldade de construir as estruturas - o desafio de engenharia era tamanho que equivalia a derrotar o diabo. Em outras versões, o construtor terceiriza a obra ao demo, que exige como pagamento a alma da primeira pessoa a cruzar a ponte ou algo nessa linha.
Na Bulgária, a mais impressionante das pontes sobre o rio Arda integra o clube. A Dyavolski most (ou, em bom búlgaro, "ponte do diabo") foi construída há uns 500 anos sobre as ruínas de uma antiga ponte romana. Ela faz parte de uma estrada que conecta o Mar Egeu ao Vale da Trácia do Norte através das Ródope, uma cadeia de montanhas na fronteira com a Grécia.
Uma paisagem bonita, sem dúvida. Mas, por séculos, as pessoas evitaram cruzar essa ponte à noite. Diziam que a esposa do construtor responsável morreu durante as obras, e que portanto a sombra da pobre mulher ficou encapsulada na estrutura da ponte. Outra lenda dizia que, em uma das pedras, dava para ver a marca da pegada do próprio diabo.
Lendas não nascem do nada. É só a gente ver algumas fotos dessa ponte sob névoa, ou ao anoitecer, ou em qualquer luminosidade propícia, que os calafrios já começam a subir. O lugar inspira causos sinistros espalhados de boca em boca por anos a fio.
A ponte que derrotou o diabo...e Napoleão
Ainda está aí? Tem tempo para mais uma?
Era uma vez um gatuno em fuga, que descia em direção ao Cávado, um importante rio no norte de Portugal. Em certo momento, ele se deparou com a linda, porém perigosa, margem de um afluente do Cávado, o Rabagão, na cidade de Vieira do Minho. Desesperado com as autoridades no encalço, o homem pediu ajuda ao tinhoso para chegar ao outro lado.
O que o pobre coitado poderia oferecer? O de sempre: sua alma. Feito o negócio, o mafarrico fez brotar ali uma ponte, para apagá-la assim que o bandido a cruzasse.
Passaram-se anos, até que o ladrão, já aposentado do crime e arrependido dos pecados, teve seu encontro derradeiro. Quando a morte veio lhe cobrar o pacto, o homem mandou chamar o padre para confessar seus feitos e tentar quebrar o contrato diabólico.
O pároco saiu em disparada em seu cavalo, mas precisou frear em cima quando viu que não poderia saltar o Rabagão e seus 13 metros de desfiladeiro. O homem olhou para o céu e pediu: "Por Deus das águas puras do Rabagão ou pelo diabo das pedras negras, apareça aqui uma ponte de pedra".
Nisso, o diabo apareceu do outro lado da margem. O padre, avistando terrível silhueta, pediu uma confirmação. "És tu, satanás?" Silêncio. "Vade retro!"
Aspergiu água benta na direção do pé-de-gancho e testemunhou o arco formado pelas gotas sagradas no ar se converter em pedra, materializando-se em uma ponte. O padre se livrou do demônio, expulso para o fundo do rio, correu e chegou a tempo de salvar o moribundo ladrão.
Desde então, ela é conhecida como Ponte do Diabo. Uma das dezenas espalhadas pelo continente, mas sem dúvida a mais famosa das pontes que carregam lendas do tipo em Portugal.
Construída em algum momento da Idade Média e reconstruída há cerca de 200 anos, a ponte da Misarela (eis seu nome oficial) liga as freguesias de Ruivães e Ferral. Assim como sua irmã búlgara e tantas outras, a ponte tem um visual idílico. Ladeada de escarpas e cascatas, ela tem um quê de mística mesmo para quem não dá a mínima para lendas e, em vez disso, prefere os testemunhos históricos.
Em maio de 1809, quando a família real lusitana já estava instalada no Rio de Janeiro, Portugal tinha que lidar com a invasão de Napoleão. O marechal francês Jean-de-Dieu Soult, instalado no Porto, decidiu fugir para a Espanha, pois estava isolado para enfrentar as tropas britânicas e portuguesas lideradas pelo general Arthur Wellesley, o futuro Duque de Wellington.
As vias mais tranquilas foram cortadas, então os franceses precisaram percorrer caminhos tortuosos na Serra da Cabreira. Eles acabaram interceptados na ponte da Misarela, o que significou a morte para muitos soldados bonapartistas.
Uma cantiga popular eternizou a vitória:
Chorai meninas de França,
Chorai por vossos maridos,
Na ponte da Misarela
eram mais mortos que vivos!
A Guerra Peninsular, como ficou conhecido o conflito entre a França napoleônica e Espanha, Portugal e Reino Unido, terminaria somente em 1814. Mas a lenda prevaleceu: o diabo não cruzou a ponte e foi derrotado no leito do Rabagão. Pelo menos era assim que portugueses viam Bonaparte.
Panfletos descreviam Napoleão como a encarnação do anticristo. Um deles pintava o imperador como a besta de sete cabeças e dez cornos - sobre cada chifre, uma coroa representava os países dominados.
A mitologia embeleza a história. Ou a deixa mais horrenda.
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