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REPORTAGEM

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O plano surreal para drenar o Mediterrâneo e unir a África e a Europa

Atlantropa, uma ideia que surgiu na década de 1920 - Reprodução
Atlantropa, uma ideia que surgiu na década de 1920 Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

20/11/2022 04h00

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36º08'N, 5º20'O
Pedra de Gibraltar
Gibraltar (território britânico ultramarino)

Você conhece arquitetos pretensiosos e megalomaníacos? Pense de novo. Dificilmente alguém chega perto do nível do alemão Herman Sörgel.

Na década de 1920, ele concebeu Atlantropa, um projeto para criar mais terras cultiváveis e habitáveis para os europeus. Como? Unindo a Europa à África. De que jeito? Enxugando o Mar Mediterrâneo.

Sörgel propôs a construção de uma colossal hidrelétrica, que faria Itaipu parecer um brinquedo de castores, no Estreito de Gibraltar. Outras barragens adicionais seriam feitas no Estreito de Dardanelos, no Canal de Suez e entre a Sicília e a Tunísia.

Todas elas, juntas, abaixariam o nível do Mediterrâneo em cerca de 200 metros e gerariam uma quantidade titânica de energia elétrica. A obra na Turquia separaria o Mar Negro do Mediterrâneo. A no Egito seguraria o Mar Vermelho, mas sem perder a conexão do canal, essencial para o comércio internacional. A na Tunísia serviria para a construção de uma estrada unindo, por terra, Europa e África. Por fim, uma outra barragem, na bacia do Rio Congo, irrigaria o Saara e criaria rotas de navegação no interior africano.

Sörgel era um sujeito preocupado com o futuro da Europa. Acreditava que a superpopulação seria um problema grave no continente.

Desde o começo do século, havia um conceito em voga na Alemanha, que defendia a ampliação do "espaço vital" para o país sobreviver. Ou seja, seria preciso uma expansão territorialista, conquistar novas áreas para os "verdadeiros alemães" ocuparem e habitarem.

Essa política, conhecida como "Lebesraum", virou plataforma do Partido Nazista e foi um dos elementos centrais que causariam a Segunda Guerra, em 1939. Era uma política agressiva e obviamente belicosa, e Sörgel, sabendo disso 15 anos antes de Hitler invadir a Tchecoslováquia, queria uma alternativa mais pacífica.

A Alemanha vivia uma época turbulenta. Derrotada na Primeira Guerra, ela foi condenada a pagar pesadas reparações aos ex-inimigos, foi proibida de se rearmar e ainda perdeu territórios. A grave crise econômica inflamou setores da sociedade que se viam humilhados, o que criou terreno para a estupidez nazista.

Havia também um contexto científico. A crise de salinidade messiniana foi um evento geológico em que o Mediterrâneo perdeu grande parte de sua área, entre 5 e 6 milhões de anos atrás. A Península Ibérica ficou "grudada" no norte da Europa, a Itália era irreconhecível, os Bálcãs não eram aquele festival de ilhas que são hoje.

Esse encolhimento do Mediterrâneo começou a ser teorizado no fim do século 19 (seria confirmado nos anos 1960) e serviu de inspiração para o projeto grandioso de Sörgel.

Assista a um vídeo de 1951 sobre o projeto Atlantropa:

Megaobras

Também existiam experimentos reais e bem-sucedidos de transformação da paisagem, em escalas muito menores, para inspirar o alemão. Poucos anos antes, os holandeses construíram uma barragem no Golfo de Zuiderzee, ampliando o território do país. Em 1936, os americanos inauguraram a Represa Hoover, a mais alta do mundo até então. Era uma época de grandes obras públicas, então imaginar algo nessa dimensão podia fazer sentido para alguns.

O arquiteto estava convicto de que, para fazer frente aos Estados Unidos, em franca ascensão, e à Ásia, eterna rival, a Europa tinha que ocupar uma área maior e ter climas mais diversos. Seria um trabalho para durar um século, que geraria, além de energia, zilhões de empregos, tanto nas mega-obras públicas como nas novas áreas cultiváveis.

Sörgel ainda levava em conta o potencial sustentável das hidrelétricas, muito menos poluentes do que as termelétricas. Era um homem à frente do seu tempo.

Só que não, não mesmo. Primeiro de tudo, porque Atlantropa previa uma Grande Europa, e não uma utópica Pan-Euráfrica. Ou seja, não bastasse tudo o que os europeus vinham aprontando no continente vizinho desde o século 15 (e principalmente desde 1884, com a divisão de quase toda a África entre as potências colonialistas), agora eles queriam também ocupar esses países, sem combinar nada com os envolvidos, como sempre.

"Eles", no caso, eram Sörgel e mais os que embarcaram na ideia, em geral arquitetos e políticos do norte da Europa. Porque Atlantropa não teve muito apoio nos países do sul, justamente os que seriam mais afetados.

Nenhuma nação mediterrânea levou a sério, porque faltavam detalhes cruciais de como o projeto afetaria culturas, povos e cidades que se desenvolveram e adquiriram características próprias ao longo de séculos, de milênios, justamente por ficar no litoral e se conectar com outros povos, em outros cantos do mesmo mar. Atlantropa mudaria para sempre esses lugares, e poucos acreditavam que seria uma mudança para melhor.

Imagine Alexandria, Alicante, Argel, Atenas, Barcelona, Bari, Beirute, Benghazi, Bodrum, Budva, Cagliari, Cannes, Catânia, Corfu, Corinto, Dubrovnik, Esmirna, Famagusta, Gaza, Gênova, Haifa, Hvar, Ibiza, Kotor, Málaga, Marselha, Mônaco, Nápoles, Nice, Palermo, Piran, Pula, Rijeka, Rodes, Sarandë, Sídon, Siracusa, Split, Tel Aviv, Tessalônica, Toulon, Trieste, Trípoli, Túnis, Valência, Valleta ou Zadar sem o mar. A lista é grande, eu sei. É para evidenciar o quão surreal era a proposta - e para lembrar que o Mediterrâneo é muito mais do que balneários para turistas fazerem selfies com seus baldes de spritz.

Enxugando gelo

Essas cidades seriam completamente outras, se é que existiriam, não fossem o Egeu, o Adriático, o Tirreno e todas as reentrâncias do Mediterrâneo. São culturas moldadas pelo mar, mas que, em Atlantropa, virariam cidades do interior.

Um dos poucos desses lugares que ganhou alguma atenção foi Veneza, que seria protegida e se tornaria um monumento. Havia, em geral, pouco detalhamento, o que contribuiu para a falta de cooperação com o projeto.

Ainda assim, ele teve seus apoiadores. O arquiteto Erich Mendelsohn se ofereceu para projetar a nova costa da Palestina, que seria radicalmente diferente. Segundo uma reportagem da revista americana "Cabinet", em 1932 o próprio Sörgel refletia sobre como a ampliação dessa área traria mudanças para a criação de um Estado judaico, pauta que ganhou mais importância após a Primeira Guerra.

No ano seguinte, porém, o triste curso da história atropelou os devaneios da dupla de arquitetos. Com a chegada do Partido Nazista ao poder, Meendelsohn, que era judeu, precisou fugir da Alemanha.

A vista de Gilbratar - swilmor/Getty Images/iStockphoto - swilmor/Getty Images/iStockphoto
A vista de Gilbratar
Imagem: swilmor/Getty Images/iStockphoto

Outro arquiteto, Peter Behrens, chegou a projetar uma torre de 400 metros com vista para a maior das barragens, em Gibraltar. Mas o território permaneceu do jeito que estava: uma possessão britânica encravada aos pés de um dos rochedos que Hércules criou ao abrir o mar e ligar o Mediterrâneo ao Atlântico, segundo a mitologia grega.

A coluna de Hércules

Um túnel sob a rocha de Gibraltar - LorenFFile/Getty Images/iStockphoto - LorenFFile/Getty Images/iStockphoto
Um túnel sob a rocha de Gibraltar
Imagem: LorenFFile/Getty Images/iStockphoto

Cedida pela Espanha em 1713, Gibraltar ocupa uma posição estratégica na boca do Mediterrâneo. Os britânicos aproveitaram isso para se precaver de uma invasão nazista. Em 1940, eles escavaram uma série de túneis sob a Pedra de Gibraltar, o grande rochedo símbolo do lugar e inspiração dos antigos gregos. Cerca de 50 quilômetros de galerias que abrigavam desde barricadas e artilharia até um hospital.

Uma dessas câmaras tinha função especial. Chamada de "Stay Behind Cave", era o centro de uma operação secreta da inteligência britânica. Na missão, seis homens ficariam trancafiados lá dentro para observar qualquer movimento estranho no estreito. Eles teriam comida e mantimentos para viver por um ano, e só sairiam de lá se a Alemanha fosse derrotada antes disso. Caso contrário, seriam abandonados e morreriam lá dentro.

Os preparativos terminaram em 1942, tudo estava pronto para o início da missão. Mas Hitler voltou sua atenção para o front oriental da guerra, e a sala secreta jamais entrou em uso.

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O esboço da ideia de Peter Behrens
Imagem: Reprodução

Por anos, rumores de que havia uma misteriosa câmara dos tempos da guerra atiçaram exploradores. Até que um grupo de espeleólogos de Gibraltar descobriu, no boxing day (o pós-Natal dos britânicos) de 1996, o que poderia ser a caverna. Mais uma década se passou até que um dos sobreviventes da missão não realizada confirmou a localização.

A Operação Tracer nunca saiu do papel. Assim como Atlantropa, como todo mundo sabe. Os nazistas perderam a guerra e Gibraltar, apesar das tensões com a Espanha, continua sendo britânica — e continua no litoral.

Atlantropa perdeu atenção depois que Sörgel morreu, em 1952. Entrou na categoria dos grandes planos mirabolantes da humanidade que seriam aproveitados de forma mais satisfatória na ficção do que na realidade.

Em 1930, ou seja, antes de Hitler montar no lombo da Alemanha, e em uma época em que havia gente que levava o plano de Sörgel a sério, um escritor chamado Georg Güntsche lançou "Panropa", livro que trazia um cientista super-herói que drenava o Mediterrâneo e conquistava grandes feitos para a Alemanha, apesar dos esforços de seus inimigos americanos e asiáticos em derrotá-lo.

Em 1962, a realidade era bem diferente quando o autor americano Philip K. Dick imaginou um mundo em que alemães e japoneses ganharam a Segunda Guerra e uma versão de Atlantropa foi posta em prática. A obra, "O Homem do Castelo Alto" (lançada no Brasil pela editora Aleph), ganhou uma versão em série de TV, em 2015 (disponível na Prime Video).

Ter inspirado o livro que deu fama a Dick foi o ápice de Atlantropa. Como lembrou a "Cabinet", o projeto maluco de Sörgel, nos últimos anos, apareceu somente em discos de new age e em questões de provas em colégios alemães. Não de história, mas de física.


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