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REPORTAGEM

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As ruínas incas com mais segredos (e muito menos turistas) que Machu Picchu

Parque Arqueológico de Choquequirao La Convención, em Cusco - Instagram/Reprodução
Parque Arqueológico de Choquequirao La Convención, em Cusco Imagem: Instagram/Reprodução

Colunista do UOL

27/11/2022 04h00

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13º23'S, 72º52'O
Parque Arqueológico de Choquequirao
La Convención, Cusco, Peru

Localização estratégica, no alto de uma montanha, cercada pela selva e por picos mais altos do que aquele em ela repousa. Arquitetura inca, cheia de terraços, praças e templos e um sofisticado sistema hidráulico.

Essa descrição genérica se encaixaria em Machu Picchu. Mas estou falando de Choquequirao, sua "irmã desconhecida", como a imprensa de turismo às vezes a chama.

"Desconhecida" do turismo de massa, apesar de ser explorada já há algumas décadas. Hiram Bingham, o americano que colocou Machu Picchu no mapa do mundo em 1911, também esteve em Choquequirao. Antes dele, há registros de visitas dos espanhóis, no século 18.

Em todo caso, Choquequirao ficou lá, quietinha, até os anos 1970. Em guias e revistas de viagem, mal aparecia até a década passada.

Choquequirao  - Camille HELIE/Getty Images/iStockphoto - Camille HELIE/Getty Images/iStockphoto
Destino no Peru ficou mais preservado e atrai muito menos turistas que outros lugares de Cusco
Imagem: Camille HELIE/Getty Images/iStockphoto

No século 20, enquanto Machu Picchu conquistou milhões e milhões de visitantes, tornou-se símbolo do Peru e um dos cartões-postais mais conhecidos do mundo (muito graças à alcunha errônea de "cidade perdida" criada já nos anos 1920), Choquequirao ficou meio que na mesma. Apesar de ser tão impressionante quanto.

No ano passado, para cada turista que chegou a essas ruínas incas, 175 foram a Machu Picchu. O motivo principal para tamanha diferença é o acesso. Enquanto é possível chegar a Machu Picchu em charmosas combinações de trem e ônibus, com o suporte e as facilidades de acomodação da agradável Aguas Calientes, cidade-base para os turistas, Choquequirao não tem nada disso. Você só chega lá em cima usando os pés, os seus ou os de mulas.

Teleférico?

Ruínas de Choquequirao têm estrutura e arquitetura parecidas com de Machu Picchu - rchphoto/Getty Images/iStockphoto - rchphoto/Getty Images/iStockphoto
Ruínas de Choquequirao têm estrutura e arquitetura parecidas com de Machu Picchu
Imagem: rchphoto/Getty Images/iStockphoto

Pelo menos por enquanto. Porque uma discussão que já tem um certo tempo voltou à tona. Choquequirao deve ganhar um teleférico?

Em julho, autoridades de Cusco e Apurímac, em cuja divisa fica Choquequirao, se reuniram com representantes locais, além do ministro do turismo em pessoa, para debater as licenças sociais para a construção do teleférico. O projeto ainda está nos meandros políticos, mas, se sair do papel, teremos defesas apaixonadas, contra e a favor.

Em 2002, a então primeira-dama peruana, Eliane Karp, foi uma das grandes defensoras da revitalização das ruínas e, na sequência, da construção de um teleférico em Choquequirao. Em 2011, o governo propôs a obra, e desde então o tema é polêmico.

O marido de Karp, Alejandro Toledo, que presidiu o Peru entre 2001 e 2006, foi um dos tantos políticos tragados nos escândalos de corrupção envolvendo a Odebrecht. A "Lava-Jato peruana" não apontou nada ligado a Choquequirao, mas qualquer coisa envolvendo o casal ficou em situação delicada. Diziam até que Karp sobrevoou as ruínas de helicóptero à procura de peças de ouro: seu interesse pelo patrimônio histórico do país se resumia a isso.

As curvas de nível de Choquequirao ao anoitecer - arthur enselme/Getty Images/iStockphoto - arthur enselme/Getty Images/iStockphoto
As curvas de nível de Choquequirao ao anoitecer
Imagem: arthur enselme/Getty Images/iStockphoto

Na teoria, o sistema de transporte traria benefícios imediatos para o turismo e a economia locais. Afinal, os dois ou três dias necessários para se chegar lá em cima seriam reduzidos a uma fração do tempo. Isso sem atrapalhar quem ainda preferir fazer a trilha.

Em um trajeto de 15 minutos, o teleférico proposto atravessa uma distância de mais de 5 km, a partir da pequena Kiuñalla, transportando até 400 passageiros por hora. Algo bem mais tranquilo do que os 62 km de trilha saindo e voltando de Cachora, muitos deles em precipícios de tirar o fôlego, literalmente, com o rio Apurímac lá embaixo.

Os argumentos contrários são vários. Dizem que Machu Picchu vem sofrendo com o turismo em excesso, o que se repetiria em Choquequirao.

Machu Picchu, de fato, vem sofrendo. Este ano, o governo aumentou o limite diário de visitantes permitidos, mesmo que isso contribua para o afundamento da cidadela. Em 2016, a Unesco chegou a cogitar incluir Machu Picchu em sua lista de patrimônios ameaçados, o que seria um baque. A maioria dos tesouros da humanidade com esse infame status está em países falidos, devastados por guerra, terrorismo e outras desgraças.

Glacial mountain view from Choquequirao trekking trail, Cuzco area, Machu Picchu area, Peruvian Andes - DanielPrudek/Getty Images/iStockphoto - DanielPrudek/Getty Images/iStockphoto
Trilhas em altitude de Choquequirao também têm vista para os Andes peruanos
Imagem: DanielPrudek/Getty Images/iStockphoto

Há também quem diga que Choquequirao tem um apelo misterioso, sagrado, que só pode ser sentido ao chegar lá. Um trenzinho ou teleférico acabaria com a mística.

Certo, esse argumento pode se sustentar mais no romance do que nos fatos. Quem faz a Trilha Inca para Machu Picchu também cria uma outra relação com a mata, a montanha e a herança do Tawantinsuyu do que quem chega de transporte motorizado. Não seria uma exclusividade, digamos assim.

Como é Choquequirao

Choquequirao archeological complex site, one of the most remote Inca ruins in the Peruvian Andes, with inca buildings, houses, temples, terraces and walls surrounded by green mountain landscape - Jekaterina Sahmanova/Getty Images/iStockphoto - Jekaterina Sahmanova/Getty Images/iStockphoto
As ruínas Incas disputam espaço com a natureza dos Andes
Imagem: Jekaterina Sahmanova/Getty Images/iStockphoto

Com vista para picos nevados e pastagens idílicas, o percurso para Choquequirao compensa todos os esforços, como é de se esperar. Ela ficava em uma antiga rota usada pelos incas para transitar entre o alto dos Andes e as selvas abaixo, a caminho da Amazônia. Seu nome significa "berço de ouro", em quíchua.

A fauna local conta com a presença de tarucas (veado ameaçado de extinção), viscachas (parentes da chinchila), raposas e ursos-de-óculos, além de uma porção de beija-flores e do espetacular galo-da-serra-andino, ave símbolo do Peru. Brindes coloridos e muito vivos à paisagem.

E os destaques da engenharia? Um mosaico de pedras brancas sobre cinzas mostra duas dúzias de lhamas. É uma inovação artística única nos Andes, e foi descoberta há poucos anos.

Salas cerimoniais, câmaras e terraços sofisticados compõem o cenário. Muitos que conhecem afirmam que Choque não deve nada a Machu Picchu em termos de beleza e grandiosidade.

Com um detalhe. A maior parte ainda não foi descoberta. Os aparentes morrinhos no complexo são, na verdade, estruturas colapsadas engolidas pela natureza. Ou seja, se já é incrível assim, imagine quando os cientistas souberem tudo que existe ali. Acredita-se que Choque seja até três vezes maior que Machu Picchu.

O problema é que a construção do teleférico pode ameaçar essas frágeis ruínas, dizem os críticos do projeto. Aí, quando o acesso estiver mais fácil e popularizado, muitos dos tesouros poderão estar perdidos para sempre.

Choquequirao tem milhares de quilômetros de terraços para agricultura. Muitos cobertos pela mata, mas outros usados até recentemente por peruanos contemporâneos. Guias afirmam que até os anos 1980 agricultores trabalhavam nessas terras.

Hoje, o destaque arqueológico de Choque são as lhamas de pedra. A luz do sol ao amanhecer reflete nas pedras claras e dão profundidade à imagem. Um especialista explicou à "National Geographic" que elas talvez representassem uma oferenda simbólica, em um tempo em que não havia animais disponíveis para sacrificar.

É só uma das várias suposições que os cientistas têm. Há também aquelas sem base científica alguma, puro fóssil de fofoca. A mais famosa diz que Manco Inca, o rei fantoche colocado pelos espanhóis que se rebelou e fundou um estado rebelde, se instalou na cidadela para liderar a guerrilha contra os europeus.

Por ora, não há evidências disso. Mas vai saber o que se pode descobrir.

Arqueologia e turismo

A gente se acostuma a enxergar grandes descobertas arqueológicas como algo estático, mas não é assim. Em 2016, outro dia desses, acharam novas ruínas perto de Choquequirao.

Sim, essa descoberta provavelmente não vai mudar o mundo. Mas e se, por exemplo, encontrarem a tumba da Cleópatra? Meu amigo, o turismo do Egito vira de cabeça para baixo.

Aquele pacote básico para ver as relíquias no Cairo e no Vale do Nilo para depois voltar rapidinho para casa vai precisar incluir Alexandria. A máscara de Tutancâmon poderá perder o espaço que ocupa como rosto do Antigo Egito.

Imagine, então, uma nova pirâmide asteca ou se descobrem uma nova Troia, mais "verdadeira" do que a que começou a ser escavada em 1870. Seriam feitos que ganhariam muito destaque na mídia, transformariam o turismo, virariam símbolos nacionais. Por essas e outras o governo da Jordânia apoia uma controversa missão científica que quer comprovar a existência da cidade bíblica de Sodoma.

Esse potencial turístico-arqueológico é o dilema de Choquequirao. Se ampliar o acesso e investir em infraestrutura, pode enfim virar "a nova Machu Picchu", com ganhos substanciais para uma economia frágil como a peruana. Mas correria o risco de perder muitos de seus tesouros ainda desconhecidos, justamente aqueles que poderiam levar a cidadela a um status ainda maior que o de Machu Picchu.

Tudo especulação, por enquanto. Fato é que, para você, turista (ou "viajante", se preferir, embora tentar diferenciar os termos seja uma bobajada inútil e elitista), Choquequirao está aí e pode ser visitada. A "National" a incluiu em sua lista de 25 melhores lugares para conhecer em 2023.

No detalhe, as ruínas incas de Choquequirao, no Peru - mtnmichelle/Getty Images/iStockphoto - mtnmichelle/Getty Images/iStockphoto
No detalhe, as ruínas incas de Choquequirao, no Peru
Imagem: mtnmichelle/Getty Images/iStockphoto

De Cusco, são quatro horas de viagem até Cachora, para o início da trilha. O caminho é tortuoso, subindo e descendo a montanha (a variação de altitude é de 2.100 metros). Diversas agências cusquenhas organizam o passeio, que dura de quatro a cinco dias.

Choquequirao não tem a delícia de um trem com teto de vidro nem a assistência necessária de uma cidadezinha de mochileiros aos pés da montanha, como Machu Picchu. Mas pode vir a ter, dentro de alguns anos. Se vai ser melhor ou não, cabe a discussão.

Vivemos em um tempo em que talvez seja possível conhecer o antes e o depois do turismo de massa da tal "próxima Machu Picchu". Então, melhor aproveitar.

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