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REPORTAGEM

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Hoje, Lusail é o centro do mundo. Após a Copa, pode virar cidade fantasma

Lusail Stadium: O nome deriva de uma flor endêmica, símbolo da região. - Shakeel Sha/Getty Images
Lusail Stadium: O nome deriva de uma flor endêmica, símbolo da região. Imagem: Shakeel Sha/Getty Images

Colunista do UOL

18/12/2022 04h00

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25º24'N, 51º31'L
Shopping Place Vendôme
Lusail, Al Daayen, Qatar

O Qatar trouxe uma série de ineditismos e pequenos recordes, uns polêmicos, outros apenas curiosos, ao capítulo "países-sede" do almanaque da Copa do Mundo. A primeira no Oriente Médio, a primeira em um país tão pequeno, a primeira em uma nação muçulmana, a primeira no fim do ano por causa do calor desértico etc. e tal.

O palco da final segue a mesma toada. Lusail é muito diferente de todas que a antecederam.

Relembre a lista: Montevidéu, Roma, Paris, um Rio de Janeiro calado pelos uruguaios, Berna, Solna, Santiago, Londres, Cidade do México, Munique, Buenos Aires, Madri, Cidade do México de novo porque a Colômbia estava afundada em crise, Roma, Pasadena, Saint-Denis, Yokohama, Berlim, Johanesburgo, Rio de Janeiro e Moscou. Temos capitais, metrópoles globais, centros pujantes fora do norte do globo, cidades ricas ou riquíssimas em história.

Certo, Solna pode não ser uma capital do mundo, mas abriga parques e castelos do século 18 (quando a Suécia era um reino poderoso) e uma igreja de quase mil anos, além de ficar colada em Estocolmo. Pasadena e Yokohama são relativamente jovens, começaram a se desenvolver no século 19, mas uma está no condado de Los Angeles e a outra é a segunda maior cidade do Japão. Saint-Denis é Grande Paris, está no miolo da história francesa. Ou seja, todas estão em grandes e relevantes centros.

Já Lusail foi toda reprojetada para ser um cartão de visitas qatari.

Lusail, a cidade

Sim, porque apesar de afirmarem por aí que ela surgiu no meio do nada, na verdade ela já existia. Era uma acanhada vila de pescadores de pérolas, tal qual Doha ou Dubai. Ainda mais acanhada, é verdade. Mas não é que nunca houve nada ali.

A pronúncia correta está mais para "lu-sêil" do que o "lu-sa-iu" usado com frequência nas transmissões brasileiras. O nome deriva de uma flor endêmica, símbolo da região.

No começo do século 20, Lusail era a residência do xeique Mohammed Al Thani, fundador do Estado do Qatar. A aldeia tinha 50 casas de pedra e barro, 14 barcos (sendo nove dedicados à pesca de pérolas), 20 cavalos, 70 camelos. A casa do xeque era um edifício com muros altos de pedra e gesso, conectada a casas menores e a uma pequena mesquita. "Por cortesia ela é chamada de forte, mas não há armas", descreveu o britânico John Gordon Lorimer, que escreveu uma conhecida enciclopédia sobre os países do Golfo Pérsico em 1908.

O xeique Jassim foi enterrado em Lusail em 1913, e por um século o forte do fundador do Qatar foi a principal atração local.

Em 2005, tudo começou a mudar. O governo anunciou planos para transformar o lugarejo esquecido em "uma comunidade sustentável, um refúgio que vai atrair o mundo nos próximos anos".

Atenção, de fato, o país atraiu, especialmente depois da controversa eleição para sediar a Copa, em 2010. As obras aceleraram a partir de então - mas não o suficiente.

Vista aérea da construção de uma ilha artificial em Lusail - WikiCommons - WikiCommons
Vista aérea da construção de uma ilha artificial em Lusail
Imagem: WikiCommons

Em 2022, ainda há guindastes por toda parte. A infraestrutura do Mundial pode ter ficado pronta com boa antecedência, mas a cidade da final seguirá em obras por mais alguns anos.

Um investimento de US$ 45 bilhões para fazer o que o jornal britânico "The Guardian" chamou de "cidade de Lego dos deuses, um lugar de plástico que Andy Warhol amaria e que é uma das cidades mais estranhas do mundo".

Lusail foi planejada para ter 450 mil habitantes - 250 mil endinheirados de tudo que é canto, pois é um dos lugares do Qatar onde estrangeiros podem investir em imóveis, e 200 mil trabalhadores comuns. Só que vai ser um desafio fechar essa conta, uma vez que o país inteiro tem 2,9 milhões de habitantes: a imensa maioria são imigrantes pobres, e só 300 mil são cidadãos qataris plenos.

Lusail, Qatar- June 06, 2022: The crescent tower in the newly developing city lusail in Qatar. - Shakeel Sha/Getty Images - Shakeel Sha/Getty Images
O rápido desenvolvimento de Lusail chamou atenção da mídia estrangeira
Imagem: Shakeel Sha/Getty Images

As obras incluem parques aquáticos, calçadões, ilhas artificiais, um zoológico de girafas, marina e, é claro, o lindo estádio da final entre Argentina e França, que de tão icônico se antecipou no nome.

O Iconic Stadium é autorreferente e não tem problemas de autoestima, pelo visto. Mas arrisco a dizer que a arena mais marcante do Mundial, aquela da qual nos lembraremos daqui a umas décadas, é a 974, aquela dos contêineres.

Lusail diz querer mirar o futuro, mas mimetiza velhos mundos. Tem uma Champs-Élysées de mentira e uma Beverly Hills fake (ainda em obras). A Place Vendôme, uma das praças mais importantes de Paris, virou, em Lusail, um shopping de luxo.

Vastas portas de correr sob contrafortes de pedras douradas falsas marcam a entrada no complexo. No lado de dentro, no entanto, é só mais um templo de consumo de ricaços, com seguranças fazendo a patrulha e fontes jorrando água para o descanso visual dos frequentadores dos restaurantes finos.

Segundo a rede australiana ABC, ainda há muitas lojas fechadas. Aliás, Lusail, nos momentos da Copa em que não havia jogos, era uma cidade vazia. "No metrô, nesses dias, você vê só umas dez, 15 pessoas", disse um turista.

Ruas largas e vazias, imóveis ociosos, guindastes por todo lugar são uma constante em Lusail. Se é assim em plena Copa, como será quando os turistas forem embora e o desfile de elefantes brancos tiver início? Por mais sustentável que esse mundial diga ser, é difícil acreditar que tudo terá pleno uso, dado o histórico recente da Fifa.

Lusail, Qatar - December 27, 2021:  Pink Fountain reflection at Lusail Marina Park. Dancing Fountain - hasan zaidi/Getty Images/iStockphoto - hasan zaidi/Getty Images/iStockphoto
Fonte luminosa no Lusail Marina Park
Imagem: hasan zaidi/Getty Images/iStockphoto

Sim, Lusail chama atenção por ainda estar em construção e por ser um tanto vazia, já que a festa da Copa rolou mais no Souq Waqif, em Doha. Mas ela se destaca, pra valer, por aquilo que já está pronto. Pelo Boulevard, um calçadão brilhante e luminoso, um suco quase alucinógeno de ostentação, com um enorme tubarão-baleia de metal flutuando no ar. Pelas rajadas de ar frio que brotam da calçada para resfriar tornozelos suarentos. Pela profusão de domos envidraçados, casas neoclássicas e torres em tons pastéis que lembram caixotes empilhados por algum gigante do deserto. É a síntese do projeto do Qatar de se firmar como destino turístico internacional e depender menos do petróleo.

Mas, por ora, é tudo uma aposta. A ilha Al Maha, com suas butiques de luxo e restaurantes nababescos, foi concebida como um ponto de encontro, amigável aos pedestres (como toda a cidade, aliás). Só que os pedestres ainda não chegaram. Não para valer.

"É algo que toma tempo", admitiu o diretor de uma galeria francesa na cidade à ABC.

"Há dez anos isso era provavelmente só pedra e areia, não tinha mais nada", disse o diretor do escritório de turismo qatari ao site "Euro News". Ele se referia ao terreno onde fica o Place Vendôme, o novo e afrancesado shopping de luxo que quer ser um dos marcos dessa cidade que quer ser referência em desenvolvimento, tecnologia e sustentabilidade no deserto.

É, Lusail quer ser muitas coisas. Por enquanto, é só o palco da final do mundial. Para qualquer fã de Copa, isso já é muito.

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