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Venezuela pode ser primeiro país do mundo a perder todas as suas geleiras

Parque Nacional Sierra Nevada, Mérida, Venezuela - Instagram/Reprodução
Parque Nacional Sierra Nevada, Mérida, Venezuela Imagem: Instagram/Reprodução

Colunista do UOL

29/01/2023 04h00

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8º33'N, 70º59'O
Pico Humboldt
Parque Nacional Sierra Nevada, Mérida, Venezuela

Certos estragos cometidos pelas mudanças climáticas não têm mais conserto. Não adiantaria encerrar agora todas as emissões de gases de efeito estufa, ainda teríamos consequências drásticas e irreversíveis.

Uma delas é o degelo em regiões tropicais. Geleiras de países mais próximos do Equador, que têm verões mais quentes e mais exposição ao sol do que aquelas além dos trópicos, estão derretendo a um ritmo visível ano após ano.

A Venezuela lidera a triste corrida para se tornar o primeiro país do mundo a perder todas as suas geleiras. Diversas outras nações, da Colômbia à Indonésia, de Uganda à Bolívia, vêm logo atrás nessa triste competição que lembra que países tropicais e subtropicais também têm montanhas nevadas — mas não por muito tempo.

Com 15 picos que superam os 4 mil metros de altitude, a Venezuela, além de tropical, caribenha e amazônica, é também um país andino. A porção mais setentrional da cordilheira dos Andes fica lá. Em Mérida, estado com cidades de bela arquitetura colonial, incrustadas nas montanhas, a altitudes bem acima dos mil metros e temperaturas que variam dos 13ºC aos 25ºC, a paisagem mudou um bocado.

Município Rangel, Mérida, Venezuela  - Instagram/Reprodução - Instagram/Reprodução
Município Rangel, Mérida, Venezuela
Imagem: Instagram/Reprodução

A cidade deve seu nome à xará espanhola. O fundador, Juan Rodríguez Suárez, quis homenagear a terra natal, Mérida, em Extremadura. Um ano depois, em 1559, a cidade mudou de nome: San Juan de las Nieves, numa clara referência às características geográficas da região.

Durou pouco e meses depois ela se chamava Santiago de los Caballeros. Na boca do povo, porém, os nomes se mesclaram e ela virou Santiago de los Caballeros de Mérida - o nome oficial, até hoje.

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Mérida, Venezuela
Imagem: Instagram/Reprodução

A Sierra Nevada de Mérida é um parque nacional dedicado às montanhas mais altas do país. Mas uma área de proteção ambiental é impotente diante de problemas globais. Cercas e guardas são inúteis contra o aquecimento global, oras.

Trinta e tantos anos atrás, a serra tinha cinco geleiras. Hoje, só resta uma, e ela está condenada.

Nas últimas décadas, duas das geleiras que eram visíveis de Mérida começaram a se retrair. Rachaduras estilhaçavam o gelo, grandes blocos despencavam. A rocha ficava mais e mais exposta. Em 2017, o Bolívar, maior pico da Venezuela, secou, seguindo a sina do La Concha, que perdeu sua geleira em 1990.

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Gravura mostra representação de como era a Sierra Nevada no passado
Imagem: ZU_09/Getty Images

Restou a geleira do Humboldt, segundo pico mais alto do país, com 4.925 metros. Foi a última a resistir porque a sombra do próprio pico a protegeu. Mas a situação é péssima.

Em 1910, ela media 336 hectares. Em 2019, a área era de 5 hectares. Ou seja, o que tinha o tamanho de um grande parque urbano foi reduzido a alguns campos de futebol.

Já não é mais questão de se, mas de quando a geleira desaparecerá. Os cientistas calculam que será em algum momento desta ou da próxima década.

Copo meio cheio?

Cladonia pyxidata - imv/Getty Images/iStockphoto - imv/Getty Images/iStockphoto
Cladonia pyxidata
Imagem: imv/Getty Images/iStockphoto

O que seria apenas uma notícia ruim para todo mundo virou uma oportunidade para um grupo de cientistas da Venezuela. É que a rápida retração dos glaciares acaba sendo uma janela única para analisar eras distintas da vida na Terra.

Foram centenas de milhares de anos de gelo cobrindo aquela terra, e agora isso está mudando. É uma transformação gigantesca, em escala geológica, acontecendo diante de nossos olhos, disse a física Alejandra Melfo ao site "Atlas Obscura".

Em 2019, Melfo e um time que inclui especialistas em botânica e ecologia fizeram expedições ao Monte Humboldt a fim de observar como novas formas de vida — líquens, musgos, plantas maiores e mamíferos — surgiam nessa nova paisagem e interagiam entre si.

Para os cientistas, o processo de encolhimento da geleira funciona como uma linha do tempo da evolução da vida nesse ambiente. Eles criaram um mapa mostrando a retração desde 1910 e documentando os ecossistemas em cinco pontos diferentes.

Quanto mais afastados da geleira, mais diversidade. Nos lugares mais próximos, havia bem menos sinais de vida. Líquens, musgos e algumas plantas são os primeiros colonizadores, depois vem o resto.

O mais surpreendente, segundo os cientistas, é a alta taxa de colaboração entre espécies. Exemplo: líquens capturam umidade para as plantas, ao mesmo tempo em que agem como um escudo contra o vento enquanto elas ainda estão crescendo.

Além disso, das 47 espécies de líquens identificadas, mais da metade jamais foi registrada no país. Sete, inclusive, podem ser espécies novas.

Provavelmente, esses lugares que perderam a cobertura de neve e gelo há menos tempo seguirão um caminho semelhante dos lugares onde a geleira desapareceu antes, atraindo plantas e animais maiores. Longe de ser algo a se comemorar. Mas, como diria Jeff Goldblum, a natureza dá seus pulos.

A vida encontra um caminho para prosperar. O que não necessariamente inclui a nossa espécie.

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