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Terra à vista!

REPORTAGEM

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Intriga, mentira e morte: a descoberta de um continente que não existe

Imagem gerada por computador do que seria a Terra de Crocker - Brocken Inaglory/CreativeCommons
Imagem gerada por computador do que seria a Terra de Crocker Imagem: Brocken Inaglory/CreativeCommons

Colunista do UOL

21/02/2023 04h00

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~83º N, ~107ºO
Ilha fantasma Terra de Crocker
Mar de Beaufort, Oceano Ártico


No fim de 1911, o ser humano enfim registrou a conquista do Polo Sul. A Antártida, o continente mais misterioso do planeta, descoberto pelos europeus há meros 200 anos e pelos maoris, possivelmente, há 1.300 anos, era uma das últimas fronteiras a ser exploradas.

O Polo Norte fora atingido pouco antes, em 1909. Agora, todos os continentes estavam dominados. África, Ásia, Europa, Oceania, América, Antártida, Terra de Crocker.

Oi? Terra de quem? Pois é. Naqueles tempos, muitas das pessoas e instituições mais respeitadas do mundo acreditavam na existência desse lugar.

Eis o que o New York Times noticiou em 27 de novembro de 1909: "Uma expedição para explorar a Terra de Crocker, o território descoberto pelo Comandante Peary em sua expedição de 1906, terá início no próximo mês de julho, segundo o professor Donald B. McMillan, que fazia parte da equipe de Peary".

Com a conquista dos dois polos, a era das grandes explorações chegou ao fim, mas ainda havia vastidões a serem mapeadas. Boas partes desconhecidas da Amazônia e do Himalaia, por exemplo, e a tal Terra de Crocker, um pequeno continente (ou uma gigantesca ilha) situado entre a Groenlândia e o Polo Norte.

Quem o avistou pela primeira vez foi Robert Peary, um dos maiores exploradores da história dos Estados Unidos. Peary fez uma série de expedições no Ártico no fim do século 19 e no começo do 20. Em uma delas, em 1906, ao tentar chegar ao Polo Norte, ele fracassou.

Frustrado, decidiu mudar a rota de retorno. Em algum ponto ao norte da Ilha Ellesmere, no extremo norte do Canadá, ele afirmou ter avistado uma terra com montanhas e vales, uma paisagem enorme que cobria boa parte do horizonte.

Ilha Ellesmer - Elen11/Getty Images/iStockphoto - Elen11/Getty Images/iStockphoto
Ilha Ellesmer
Imagem: Elen11/Getty Images/iStockphoto

Contou isso em um livro que escreveu sobre a viagem e decidiu batizar o lugar de Terra de Crocker, em homenagem a seu patrocinador. George Crocker era um eminente banqueiro de San Francisco que investira US$ 50 mil (cerca de US$ 1,5 milhão em valores corrigidos) na expedição.

Três anos depois, Peary finalmente chegou ao Polo Norte. O homem que desde 1886 explorava o Ártico como ninguém, que perdeu sete dedos do pé congelados, chegou lá. Ou pelo menos disse que chegou.

Robert Peary - Domínio público - Domínio público
Robert Peary
Imagem: Domínio público

Na viagem de volta, Peary descobriu que Frederick Cook, que integrara sua tripulação anos antes, anunciou, naquela mesma semana, que ele atingiu ao Polo Norte. Foi só aí que Peary afirmou ter chegado lá. Peary acusou Cook de charlatão, e uma ruidosa polêmica entre os dois exploradores americanos ganhou a imprensa.

Com o tempo, a versão de Peary acabou aceita. "Hoje, a maioria dos historiadores não enviesados concorda que nenhum dos dois chegou ao Polo Norte", afirma Beau Riffenburgh em "Exploration Experience" (inédito no Brasil). "Mas quem foi o primeiro a de fato pisar lá? Tal honra pertence a um grupo de 24 russos, liderados por Aleksandr Kuznetsov, que, em 23 de abril de 1948, pousou lá com três aeroplanos."

Mas, em 1909, a afirmação de alguém do peso de Peary se impôs, e ainda reforçou a sua história a respeito da Terra de Crocker. Além disso, os cientistas da época tinham motivos para suspeitar de que havia algo de fato na região. Tábuas de marés e os padrões da deriva dos navios no gelo indicariam que existia uma grande massa de terra ali.

Nuuk, na Groenlândia - Vadim_Nefedov/Getty Images/iStockphoto - Vadim_Nefedov/Getty Images/iStockphoto
Nuuk, na Groenlândia
Imagem: Vadim_Nefedov/Getty Images/iStockphoto

Havia ainda um contexto político: 1909 foi o último ano do governo de Teddy Roosevelt, presidente reconhecido pelas pautas conservacionistas e defensor da exploração mais consciente da natureza. Era uma época também de hipernacionalismo e hipermasculinidade, lembra o historiador David Welky no livro "Wretched and Precarious Situation: In Search of Last Arctic Frontier" ("Situação precária e miserável: à procura da última fronteira do Ártico", sem edição brasileira).

No livro, Welky explica que a história da Terra de Crocker era estranha desde o princípio. Logo que Peary retornou aos EUA após a expedição de 1906, ele não falou nada sobre a tal descoberta. Welky vasculhou a correspondência do explorador (incluindo cartas ao próprio George Crocker) e não encontrou nenhuma menção ao território.

Nos diários de bordo de Peary e dos membros da tripulação, não há nenhuma menção a uma suposta nova terra. Mesmo nos rascunhos do livro e em um excerto publicado na revista "Harper's" não existe nada a respeito.

Em 1907, Peary publicou um livro, "Nearest the Pole" ("mais perto do Polo"), em que dedica alguns parágrafos à nova terra. Logo, fica claro, segundo Welky, que tudo foi uma armação de Peary para se autopromover. Um causinho suculento e mentiroso para vender mais livros.

Mas por que um consagrado e bem-sucedido explorador inventaria algo dessa magnitude, como se fosse um reles coach picareta ou um influencer sem noção e sem caráter? Ele poderia ter visto uma ilha de gelo, conjectura Welky. Mas elas não têm picos nem vales. "Será que a gente vai acreditar que o explorador ocidental mais experiente do Ártico iria confundir um iceberg com um continente?", questiona.

Uma possibilidade é que tenha sido uma miragem do tipo "fata morgana". Outros exploradores já contaram terem sofrido os mesmos sintomas no mesmo ponto do Ártico. Os efeitos dessa miragem fazem com que as coisas pisquem, oscilem, balançam. Ainda assim, é difícil confundir com terra firme, avalia Welky.

O fenômeno chamado "fata morgana" - RBTKTN/CreativeCommons - RBTKTN/CreativeCommons
O fenômeno chamado "fata morgana"
Imagem: RBTKTN/CreativeCommons

"Em outras palavras, em algum momento entre o manuscrito final e a publicação do livro, os parágrafos sobre a Terra de Crocker misteriosamente apareceram", disse Welky à "National Geographic". Poderia ser só mais uma bobagem, como tantas que até hoje gastam tinta e papel e o nosso precioso tempo de leitor. O problema é que essa ganhou evidência, fôlego. Pudera, a maior autoridade que os americanos, e o Ocidente, tinham em assuntos ligados ao Ártico falou que havia um novo continente ou uma ilha entre o Canadá e a Groenlândia. É um argumento forte demais.

Mais ainda, e muito importante: a ciência da época indicava que fazia sentido a existência da Terra de Crocker. Além de marés e padrões de deriva de navios, as rotas de aves e de outros animais migratórios corroboravam a hipótese. Havia até história de inuítes que contavam que tinham parentes que visitaram o lugar.

A queda da farsa

A suposta localização da Terra de Crocker - Domínio público - Domínio público
A suposta localização da Terra de Crocker
Imagem: Domínio público

Em 1909, com a conquista do Polo Norte, o assunto voltou à tona, porque Frederick Cook atravessou a região onde ficaria a Terra de Crocker e - tcharam - não viu nada. A polêmica estava lançada, e vindo logo do rival de Peary.

A expedição noticiada pelo "New York Times" para comprovar a existência de Crocker demorou quatro anos para sair. Uma vez lá, começou a desmontar de vez a farsa.

Após meses de viagem, Piugaatoq, um caçador inuíte com 20 anos de experiência na área, explicou a McMillan, líder da expedição, que tudo havia sido uma ilusão. McMillan insistiu por mais cinco dias no mar gélido até aceitar que o homem estava certo.

Mais tarde, McMillan escreveu:

"O dia estava excepcionalmente claro, se a terra pudesse ser vista, agora era a nossa vez. Sim, lá estava! Nossos poderosos binóculos realçaram mais claramente (...) colinas, vales e picos cobertos de neve (...) Nosso julgamento então, como agora, é que isso era uma miragem."

McMillan confirmou com os próprios olhos que o local era uma fonte abastada de miragens. A casa caiu para Peary, mas não tanto. Ele não foi cancelado, como poderia ser nos dias de hoje, e ainda é considerado um dos grandes exploradores americanos. Ele inventou a Terra de Crocker porque queria mais holofotes e, consequentemente, dinheiro para a bem-sucedida expedição de 1909. Só que de Crocker ele não teve apoio, porque o banqueiro tinha causas mais urgentes para apoiar: San Francisco fora devastada por um terremoto três anos antes.

Quem se deu mal, como sempre, foi o lado fraco da história. Piugaatoq acabou morto covardemente por um membro da tripulação de McMillan durante a viagem de 1913-14.

Quanto às supostas evidências que corroborariam a existência de um pequeno continente perto do Polo Norte, mais tarde os cientistas descobriram que as correntes marítimas atravessam o Ártico pelo Estreito de Bering, se dividem em duas direções e se reencontram perto da Groenlândia.

Ou seja, aquilo que influenciava marés, embarcações e animais não é uma massa de terra, mas o Giro de Beaufort, uma corrente marítima circular, localizada entre o Alasca e o Canadá. Em 1938, veio o último prego no caixão da ilha fantasma: um avião sobrevoou a localização da Terra de Crocker e evidenciou, uma vez mais e de uma vez por todas, que não há terra firme ali.

'Redemoinho' essencial

Ilustração com as correntes marítimas - Brn-Bld/CreativeCommons - Brn-Bld/CreativeCommons
Ilustração com as correntes marítimas
Imagem: Brn-Bld/CreativeCommons

O Giro de Beaufort é importante para o equilíbrio ecológico da região, porque preserva água doce na superfície do mar. Essa água entra na corrente por meio de chuvas e do derretimento natural do gelo. O giro a mantém acima da água salgada, mais densa, o que ajuda a impedir que o gelo do oceano derreta. De tempos em tempos, a corrente libera porções dessa água no Atlântico, que a dispersa pelos mares e, consequentemente, auxilia a regular o clima de todo o planeta.

Em 2020, um estudo de 12 anos da Nasa mostrou que o Giro de Beaufort vem, desde os anos 1990, acumulando mais água doce. A causa disso é a perda de gelo marinho no verão e no outono, o que deixou a corrente mais exposta aos ventos, fazendo com que ela girasse mais rapidamente e retivesse mais água.

Antigamente, a corrente alterava de sentido horário para anti-horário a cada cinco ou sete anos. Mas ela está há mais de 20 anos na mesma. Os cientistas estão acompanhando de perto, porque se o Giro de Beaufort mudar o sentido, poderá liberar a água acumulada de uma vez, o que traria consequências sérias para o clima, especialmente na Europa.

O aquecimento global está aí. Mas ainda tem quem não acredite. Pior do que ser pego por uma "fata morgana".

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