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Asfalto está cada vez mais perto de Mustang - o reino proibido, não o carro
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29º12'N, 83º52'L
Lo Manthang
Mustang, Gandaki, Nepal
A Nova Rota da Seda não é só um megaprojeto de desenvolvimento econômico entre a China e 150 países a fim de criar e fomentar rotas comerciais, por terra e água (e, no caminho, deixar um rastro de neocolonialismo, imperialismo econômico e nações pobres endividadas, segundo os críticos). O impacto cultural será enorme, e em alguns países isso já é evidente.
É o caso de um antigo reino, antes isolado do mundo, que está ficando mais acessível e pode se tornar um polo turístico, com todas as facilidades, instalações e serviços que até então lhe eram alienígenas. Hoje, Lo Manthang, a capital histórica da mítica Mustang, no Nepal, está mais perto do resto do planeta.
Não é só a China que está colocando a cidade no mapa, mas, especialmente, o próprio Nepal. No século passado, o acesso à região era estritamente controlado pelo governo do país. Estrangeiros não podiam admirar a cidade murada de seis séculos, as fileiras apertadas de casas de muros caiados. Isso ficou no passado.
As rotas da seda
A própria origem de Lo Manthang está ligada à Rota da Seda, a original. A região fica no Vale do Kali Gandaki, entre as montanhas Dhaulagiri e Annapurna, respectivamente a 7ª e a 10ª mais altas do planeta, com 8.167 m e 8.091 m de altitude.
O vale propicia uma via direta conectando Índia e Tibete. Mercadores do subcontinente vinham em busca dos ricos depósitos de sal tibetanos, e em troca sempre tinham a oferecer seu extenso cardápio de especiarias.
No século 15, os lopas, o povo local, enriqueceram com as taxas cobradas das caravanas de iaques (o bovino típico do Himalaia). As tropas iam e vinham transportando sal, cevada, turquesas e as glândulas do cervo-almiscarado, fontes de almíscar, um perfume bastante valorizado, que também tinha uso medicinal.
Muito do dinheiro obtido em Mustang era convertido em templos e obras de arte. Isso porque, antes dos mercadores, que desde o século 11 movimentavam esse trecho da Rota da Seda, monges budistas já faziam a rota Índia-China - nesse trânsito de ideias e filosofias, nasceu o budismo tibetano.
Em tempo, porque sei que você está se perguntando. Mustang, aqui, não tem nada a ver com os cavalos selvagens americanos, muito menos com o carro que os equinos inspiraram. "Mustang" é uma palavra do tibetano para algo como "planície dos desejos", em referência às riquezas que a região propiciava.
No século 18, os principados autônomos vizinhos, que eram budistas, foram invadidos por um povo de origem mongol, o gurkha. Os conquistadores estabeleceram o hinduísmo como religião oficial e unificaram os pequenos estados, fundando o Nepal.
O rei de Lo viajou para prestar as devidas homenagens, levando leite, almíscar e um punhado de terra para mostrar que Mustang tinha o que compartilhar. O gesto deu certo, e o rei nepalês ofereceu proteção em troca de vassalagem e tributos anuais.
Isso se mostrou providencial 200 anos mais tarde. Em 1950, a China socialista invadiu e anexou o Tibete, vizinho de Mustang, deixando um rastro de destruição e morte para trás. Na década seguinte, Mustang viu todo seu patrimônio budista preservado, enquanto o Tibete era forçado a fechar e abandonar muitos dos templos que restavam de pé.
A vida na Guerra Fria era assim. Se não fossem socialistas importunando de um lado, tinha os capitalistas do outro (quando não os dois ao mesmo tempo). Na década de 1960, a CIA aproveitou o isolamento de Mustang para treinar guerrilheiros tibetanos para adentrar o território, agora controlado pela China. Em 1974, o governo nepalês desbaratou a missão e decidiu manter o pequeno reino ainda mais inacessível, a fim de evitar intromissões gringas.
A última grande ruptura foi em 2008. Após uma década de guerra civil entre as forças do governo e uma guerrilha maoista que deixou 16 mil mortos, o Nepal virou uma república e aboliu a monarquia. Todas elas.
Novos tempos
Foi o fim oficial do Reino de Lo, que desde 1795 era uma dependência do Nepal com certo grau de autonomia. O agora distrito de Mustang é parte integral do país, mas, na prática, a monarquia local ainda é reconhecida por boa parte da população.
O fechamento do Tibete e o isolamento promovido pelo governo em Katmandu empobreceram Mustang. Para piorar, em 2015 um terremoto deixou grandes estragos.
O palácio, do século 15, está na lista dos potenciais patrimônios culturais na Unesco, mas não foi efetivado porque os danos causados, além de severos, não foram tratados. Faltam recursos para a restauração e para a prevenção de futuros tremores.
Para atrair mais recursos, Mustang precisava se aproximar do mundo. O turismo está liberado há mais de 30 anos, mas para chegar lá era preciso encarar semanas (sim: se-ma-nas) de caminhada ou montado em cavalos ou iaques. Isso após desembarcar em Katmandu, que, vamos combinar, não é das capitais mais acessíveis. Em 2008, por exemplo, só 2 mil estrangeiros visitaram a cidade.
Hoje, essa jornada de quase 480 quilômetros leva só três dias, coisa à toa, em veículos 4x4. A estrada, que está passando por melhorias, é repleta de curvas sinuosas perigosas e estreitas, beijando os desfiladeiros. Precária, mas ainda assim é uma estrada, que permite aos habitantes de Mustang ter acesso bem mais fácil às cidades maiores, seja para fazer compras seja para ir ao médico.
Do outro lado da fronteira, novas rodovias chinesas vão conectar Lo Manthang a Pequim. O asfalto poderá trazer uma nova era de bonança econômica a esse antigo reino que vivia do comércio entre os povos.
Há muitas expectativas em relação ao turismo. O Nepal tem bastante apelo entre montanhistas, é claro, mas não só. Trilheiros e peregrinos religiosos poderão explorar mais, e melhor, os numerosos vales, cânions, templos e palácios de Mustang.
Lo Manthang não tem nem 2 mil habitantes, mas já conta com uma dúzia de hotéis. Há um temor no ar de que fluxos intensos de turistas corroam a cultura ancestral do antigo reino, mas é difícil crer que ela se tornará uma dessas cidades temáticas de si mesmas, como já acontece em tantos países.
Primeiro, o clima na região é de doer. Só é viável viajar a Mustang durante seis meses no ano, porque o inverno congela tudo, até torneiras e descargas. No verão, historicamente seco, as chuvas têm sido mais frequentes. Além dos problemas de deslizamento de terra, que bloqueiam a estrada, isso é um problema até para a arte.
O aumento da umidade tem desintegrado pinturas de séculos e estragado murais nas paredes dos templos. É mais um motivo para Lo Manthang correr atrás de novas fontes de renda.
Uma delas é promissora e polêmica. Em 2014, o Nepal descobriu que o subsolo de Mustang tem uma grande reserva de urânio. Isso muito interessou à China, que está investindo em novas fontes de energia, a fim de reduzir as emissões de carbono. O país já tem mais de 50 reatores nucleares, e o número pode se multiplicar nos próximos anos.
Nenhuma mina ainda foi aberta na região. "Mas parece lógico que, em algum momento, o urânio vai ser um dos tesouros cobiçados de Mustang", acredita a "National Geographic".
Após tanto tempo isolada, Mustang está atravessando uma revoada de transformações. O boom econômico promete turbinar o turismo, mas o aquecimento global já está mostrando que vai complicar as coisas. O fluxo de visitantes pode ameaçar uma cultura antiga, mas também trazer motivos (e grana) para conter o próprio fluxo de migrantes que deixam Mustang ano a ano (dizem que há mais lopas vivendo em Nova York do que em Lo Manthang).
Talvez Mustang deixe de ser um dos lugares mais isolados da Terra. Mas continuará existindo, com todas as idiossincrasias do mundo moderno.
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