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Nudistas, ricos e radicais: a seita de alemães que só comiam coco
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4º14'S, 152º23'L
Kabakon
Ilhas Duque de York, Nova Bretanha Oriental, Papua Nova Guiné
O sol é a fonte de vida de todo o Universo. Nos trópicos, quando está a pino, ele atinge o máximo dessa carga energética. Nosso cérebro, por ficar mais próximo do sol, é o órgão mais importante do corpo humano. Para manter um corpo saudável, então, precisamos estar sempre próximos do sol tropical.
Mas também precisamos de uma alimentação saudável. Que fruto absorveria melhor a energia solar? Um que estivesse mais exposto e mais próximo do astro, que fosse grande, robusto e que brotasse no alto de árvores altas, cujas propriedades seriam tão benéficas que não precisaríamos comer mais nada?
O coco!
Ora, a solução para todos os problemas é morar num lugar ensolarado e viver só de coco.
Houve um tempo, 120 anos atrás, em que teve gente que largou tudo para seguir essa teoria até o fim. No caso, até o fim da própria vida.
O culto ao coco
A rápida industrialização da Alemanha no fim do século 19 provocou o surgimento da "lebensreform", uma espécie de movimento descentralizado contrário às modernidades e ao urbanismo crescente. Abdicação de álcool e de tabaco e uma vida mais rural e ligada à natureza, com muita comida crua, liberdade sexual e negação a vacinas estavam entre as bandeiras. Ioga, medicina alternativa, teosofia e vegetarianismo, idem.
A corrente já foi classificada de moderna, mas também de reacionária. Um pastiche filosófico que atraiu um jovem chamado August Engelhardt, estudante frustrado de química e física e funcionário de uma farmácia. Em 1899, ele entrou para a Jungborn, uma associação de naturistas vegetarianos que pregava nas montanhas um estilo de vida desapegado de quase tudo.
O clube de nudistas acabou desmantelado por causa de alguns problemas (para começar, a prática era proibida por lei). Mas Engelhardt estava obcecado. Queria encontrar uma fonte farta e saudável de alimento cru.
Em 1902, com uma generosa herança, o filho de industrial que odiava as modernidades da Revolução Industrial embarcou em um navio a vapor rumo ao Pacífico. Passou por Ceilão (atual Sri Lanka) e desembarcou na Nova Guiné Alemã, uma colônia que entrara na esfera do império teutônico desde que comerciantes alemães estabeleceram entrepostos nessas ilhas.
A Nova Guiné, a segunda maior ilha do mundo, é habitada há mais de 30 mil anos. Portugueses e holandeses passaram pela sua costa no século 16, mas só no 19 os europeus chegaram para valer. Dividiram o arquipélago em três. O oeste ficou com os Países Baixos e corresponde hoje à província indonésia de Papua. O sul foi para os britânicos e o norte, para os alemães.
Engelhardt decidiu se estabelecer em Kabakon, nas Ilhas Duque de York, que integram o grande arquipélago Bismarck (os nomes atestam como a Nova Guiné foi dividida entre as potências). Com a herança, comprou uma propriedade de 75 hectares com uma plantação de bananas e, obviamente, cocos. Passou a morar em uma casinha de três cômodos, abandonou as roupas e manteve apenas sua biblioteca de 1.200 livros (que, segundo o jornal "Solomon Times", das Ilhas Salomão, chegou a ser uma das melhores de todo o Pacífico).
Lá, ele desenvolveu a teoria que abre a coluna desta semana. Desenvolveu uma úlcera na perna direita, que ele associou à sua dieta do passado, que maculava o corpo com outras frutas que não o coco.
Cansado de ser ridicularizado em sua terra natal, o jovem alemão seguia convicto de que viver com o mínimo de roupas sob o sol tropical era a opção mais saudável. Na Nova Guiné, abraçou o coco de vez como a fonte de alimento suprema. Mais que isso: criou um culto em torno do fruto.
"Ser o único coconívoro puro do mundo, entretanto, não é o suficiente para ele. Manter apenas para si esse conhecimento que poderia melhorar tanto o destino da humanidade o deixa infeliz", escreveu o botânico italiano Stefano Mancuso em "A Incrível Viagem das Plantas", (Ubu Editora) divertido livro que mostra como as plantas, do jeito delas, também migram.
Engelhardt passou a pregar para que outros europeus se juntassem a ele (os melanésios locais não lhe davam tanta bola). Com barba demais e roupa de menos, ele começou a atrair adeptos.
Em 1905, o "New York Times" fez uma reportagem sobre o culto. "Ele acredita que o homem é um animal tropical, que não foi feito para viver em cavernas chamadas casas, mas para vagar como Adão, com o sol batendo durante o dia e o orvalho do céu como cobertor à noite."
Engelhardt, dizia o texto, achava que, com o tempo, esse estilo de vida os deixaria imunes a quaisquer doenças e que eles conquistariam a morte, como se fossem deuses. Com sol demais na cabeça, ele achava que seria imortal. O título da matéria, que chegou a dá-lo como morto, é digno de nota: "Fracasso de um Éden sem mulheres no Pacífico".
O fim
A Sonnenorden, ou Ordem do Sol, como foi nomeada, chegou a ter 15 membros. Ninguém teve um final feliz.
O coco é uma excelente fonte de gordura, ótimo em carboidratos. Mas tem poucas proteínas e nada de uma série de vitaminas essenciais. É saudável, mas longe de ser o alimento onipresente pregado pela ordem.
O coqueiro é útil na alimentação, no vestuário, na pesca. É uma das árvores mais importantes do planeta em termos culturais, e para os povos do Pacífico é, simplesmente, a árvore da vida.
Mas foi um bando de alemães que levou isso ao pé da letra de forma comicamente catastrófica. Um a um, os seguidores de Engelhardt sucumbiram.
Uns tiveram mortes coerentes com o que a seita pregava, foram vítima de insolação ou malária, enfraquecidos pela dieta bizarra a que se submeteram. Outros caíram pelo contexto em que viviam: teve quem morreu afogado e teve até um que morreu com um coco que lhe rachou o crânio.
Não vale rir. Apesar de lendas urbanas inflarem a quantidade de vítimas anuais, uma queda de coco pode, sim, ser fatal. Há poucos meses, em dezembro de 2022, um homem morreu assim na Índia.
Quem ainda estava vivo pôs a mão na consciência e tratou de ir embora da ilha. Engelhardt ficou doente e precisou ser levado a um hospital papua. Recuperado, ele não desistiu da empreitada, mas o governo alemão, alarmado, passou a exigir um depósito antecipado para as despesas médicas e o transporte da volta.
Em 1914, Engelhardt era pouco mais que um solitário saco de ossos e feridas quando foi feito prisioneiro no despertar da Primeira Guerra Mundial. A Austrália, que desde 1906 administrava a porção britânica da Nova Guiné, invadiu a parte alemã — com exceção de um período na Segunda Guerra, com a invasão japonesa, Papua Nova Guiné permaneceria uma colônia australiana até 1975, quando conquistou a independência.
Não se sabe como, mas Engelhardt conseguiu sobreviver até 1919, quando morreu pesando pouco mais de 30 quilos. Ele tinha 43 anos.
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