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'Pompeia do Caribe': cidade destruída por vulcão virou zona de exclusão
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16º42'N, 62º13'O
Plymouth
Montserrat (território britânico ultramarino)
No dia 18 de julho de 1995, o vulcão que por séculos estava dormente na ilha de Montserrat, no Caribe, começou a expelir cinzas. Em seguida vieram os tremores, a erupção e aquele climinha de fim dos tempos.
Em 21 de agosto, uma forte explosão atingiu a então tranquila capital, Plymouth. As autoridades ordenaram a evacuação de toda a parte sul da ilha, condenada.
Duas semanas depois, o furacão mais forte a atingir o Caribe em seis anos varreu Montserrat, arrancando árvores, derrubando postes e tudo mais. Os habitantes ainda estavam se deslocando para o norte quando, dez dias depois, um novo furacão trouxe enchentes e mais destruição.
A ilha parecia afundada no Antigo Testamento. Desmond Flasher Daley, um cantor de calipso de Montserrat, fazia sucesso com uma música cuja letra poderia estar em um disco do Slayer: "The sulfur smelling so bad, the ashes driving me mad."
Mas até que os furacões ajudaram em algo, espalhando as cinzas vulcânicas para longe. Em setembro, as pessoas aos poucos começaram a voltar à normalidade.
Por pouco tempo. Em 1996 e, de novo, em 1997, o Soufrière entrou em erupção. Se em 1995 a devastação se concentrara nos prédios públicos enterrados por lava e cinzas, dessa vez pessoas estavam morrendo. O governo decidiu abandonar Plymouth de vez. A ilha que já havia sido chamada de "esmeralda do Caribe" agora era a morte nos trópicos.
Em agosto de 1997, dois terços da população haviam sido evacuados. Os 4 mil habitantes que restavam se concentraram no norte à medida que a área inabitável crescia no sul.
Desde junho, a vida estava insuportável na ilha. "Vulcão nervoso está transformando joia caribenha em ilha de cinzas", noticiou o "New York Times".
A nuvem de gases subiu a 10 mil metros de altitude, tapou o sol e inundou Montserrat de detritos e cinzas. Pedras a 480 ºC despencavam a mais de 150 km/h. Em agosto, as erupções ocorriam de 12 em 12 horas, como se o mês do cachorro louco tivesse encomendado o sino da igreja do apocalipse.
Plymouth, em chamas, era praticamente a única fonte de luz em uma ilha mergulhada na escuridão, com estradas cobertas de cinzas e veículos destruídos ou abandonados. As pessoas, de máscaras, caminhavam a passos monótonos e monocromáticos, cobertas de cinza dos pés ao cabelo.
Boa parte dos que ainda não haviam deixado Montserrat estava abrigada em escolas ou igrejas. A ilha que tinha no turismo a maior fonte de divisas perdeu o porto, o aeroporto e boa parte da infraestrutura.
Como muita gente deixou as coisas para trás e não pôde voltar, Plymouth virou uma cidade-fantasma, comparada muitas vezes à romanada Pompeia. Mas uma curiosa versão britânica, caribenha e contemporânea de Pompeia.
Que lugar é (era) esse?
Montserrat é uma pequena ilha no norte das Pequenas Antilhas. Em formato de gota, tem cerca de 16 km de comprimento e 11 km de largura. São só 100 quilômetros quadrados.
Os humanos a habitam há pelo menos 2 mil anos. Colonos irlandeses chegaram no século 17, em 1667 ela se tornou formalmente uma possessão britânica e pouco depois o tráfico de escravizados começou.
A população chegou a 15 mil às vésperas da hecatombe. Montserrat era, e ainda é, um dos 14 territórios britânicos ultramarinos que o Reino Unido mantém no Caribe, no Atlântico e em outras regiões do globo. Esses territórios têm certa autonomia, mas dependem de Londres para assuntos como defesa e relações internacionais. São, na prática, uma amostra do que já foi o Império Britânico.
Hoje, os cerca de 5 mil habitantes vivem no norte da ilha. A parte sul, denominada zona de exclusão, é o retrato da ira vulcânica.
Aos poucos, os ilhéus estão adaptando a antiga aptidão turística às novas condições. Ou seja, a depender das condições climáticas, é possível visitar, em passeios certificados, as ruínas modernas de Plymouth, os restos de casas cobertos de cinzas, os prédios abandonados etc.
No fim das contas, acaba sendo uma questão de reposicionamento de produto. Pare e pense. Quantas ilhas paradisíacas existem no Caribe? Agora, quantas ilhas podem oferecer ao turista uma metade ainda verdejante e tropical e outra decrépita, com direito a cidade fantasma e rastros de um desastre natural que faria Noé contratar um seguro de vida?
Só Montserrat é assim. A ilha é o vilão Duas Caras das Antilhas. O turismo local aproveita os novos cenários criados pelo vulcão e a vende como a "Pompeia do Caribe".
A bola pune
Outro fator que tem ajudado a reerguer a autoestima local é o esporte. Seleções de futebol são capazes de unir países historicamente dilacerados (como a Bósnia-Herzegóvina, que disputou a Copa de 2014) ou de virar fonte de orgulho em meio a um mar de privações.
Por ser território britânico, Montserrat está bem longe de ser um Haiti. Mas com uma economia devastada, a população reduzida a um terço e o território habitável cortado em mais da metade, é evidente que os últimos 28 anos não foram nada fáceis.
O futebol, por vezes, é um alento. A seleção local foi criada em 1991 e no ano seguinte à erupção foi aceita pela Fifa, que em seu processo de expansão das fronteiras do futebol estimulou e aceitou a criação de ligas e seleções nacionais, não importando tanto o status político de tal lugar. Foi assim que, enquanto a ONU tem 193 associados, a Fifa chegou a 211.
Montserrat já esteve entre as piores das piores seleções. Quer dizer, ainda está, mas a evolução é visível. Se o time nacional esteve na lanterna do ranking da Fifa (206º à época), hoje está em 179º, à frente de países bem maiores.
Em 2002, no dia em que Ronaldo e Rivaldo sambaram na cara simpática de rottweiler de Oliver Kahn, um amistoso no Butão levou a campo as duas piores seleções do mundo, pelo menos segundo o famigerado ranking da Fifa. Conhecido como "A Outra Final", o jogo rendeu um documentário e uma bela vitória para os donos da casa. Para Montserrat, foi só mais uma goleada de 4 a 0.
Para termos uma ideia do quão baixas são essas posições no ranking: a Bolívia, um exemplo familiar de seleção historicamente ruim, ocupa o 83º lugar. A pior posição em que o país esteve foi 115º. Butão e Montserrat são times em patamares bem inferiores.
Quer ver? Montserrat participou das eliminatórias para a Copa de 2006. Foi eliminada por Bermuda: 13 a 0 no jogo de ida, 7 a 0 no da volta.
Mas era a primeira vez que a ilha sediava um jogo oficial desde a erupção. Mesmo depois o time da casa teve poucas oportunidades, foram só sete jogos entre 2012 e 2017. Difícil desenvolver qualquer coisa nessas circunstâncias.
A sorte começou a mudar em 2018 com o surgimento da Liga das Nações da Concacaf. Assim como a versão europeia, ela tem proporcionado mais encontros entre seleções de tamanho, tradição e qualidade semelhantes.
A chegada de um técnico escocês, que como jogador chegou a disputar a Copa, levou o time a um novo patamar: por apenas um gol, um único e irritante golzinho, Montserrat não se classificou, em 2019, para a Copa Ouro da Concacaf, o principal torneio de seleções das Américas do Norte e Central.
Um tremendo avanço para um país que tem o mesmo número de habitantes que o Copan.
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