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Na Ucrânia, Túnel do Amor é cenário dos sonhos com origem nada romântica
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50º45'N, 26º02'L
Túnel do Amor
Klevan, Rivne, Ucrânia
A Odek é referência na produção de madeira no noroeste da Ucrânia. Reconhecida pelo Instituto de Testes de Materiais Eberswalde, espécie de Inmetro alemão, e com dois certificados ISO 9000, a fábrica, fundada em 1881, quando a Ucrânia integrava o Império Russo, é especializada em compensados de bétula e compensados plastificados.
Os cerca de 1,4 mil funcionários, responsáveis por uma produção anual de 85 mil metros cúbicos (pelo menos até antes da guerra), trabalham com maquinário de ponta, de empresas como a finlandesa Raute, a suíça Steinemann e a alemã Holzma, segundo a Associação Empresarial Europeia. A matéria-prima também é de primeira linha: bétulas das melhores áreas florestais da Ucrânia e da Rússia, filmes fenólicos de fabricantes finlandeses e espanhóis, resinas polonesas. O reconhecimento pelos serviços reside nos cerca de 30 países europeus que importam peças da Odek.
Mas pode ter certeza que a imensa maioria das pessoas que se deslocam para ver o transporte dessa madeira em ação não faz ideia, ou está se lixando, para a sua qualidade - ou sequer liga para o material que está sendo carregado. Podia ser madeira, minério de ferro ou batatas, tanto faz. Todo mundo está lá por causa do "túnel do amor".
A ferrovia abraçada por fileiras de árvores que formam um túnel verde (no verão) é uma curiosa e inesperada atração turística. Antes da invasão russa, no ano passado, ela tinha uma respeitosa cota de visitantes, atraídos pelas imagens que percorreram a internet, a esse pedaço pouco conhecido da Ucrânia.
A história começa nessa bem-sucedida fábrica. Fundada há mais de 140 anos na pequenina Orziv, a Odek transforma bétulas, árvore muito comum no Hemisfério Norte e de largo uso comercial, em compensados de madeira usados nas indústrias de habitação, de móveis etc.
Em um trecho da ferrovia que conecta a fabricante ao enorme mercado europeu, ficava uma base militar encravada na floresta. Nos tempos paranoicos da Guerra Fria, uma base soviética escondida podia até não estar envolvida em algo muito estratégico, mas jamais podia permitir que transeuntes e fuxiqueiros pudessem bisbilhotar o que rolava ali.
Ora, mais importante do que o que acontecia era esconder. Então, os militares plantaram árvores ao longo da ferrovia para evitar que o transporte de equipamentos chamasse atenção indevida.
Com o tempo, a passagem constante do trem podou as árvores, conferindo a elas o aspecto de túnel. Não deixa de ser irônico um corredor verdejante de árvores vivas guardar a passagem de árvores mortas, fragmentadas, compactadas e transformadas em itens que terão os mais variados usos na vida humana contemporânea.
Na década passada, o "túnel do amor", como foi apelidado, chamou atenção nas redes sociais. Os maquinistas do trem passaram a conviver com a presença de turistas ao longo da ferrovia. Alguns se aproximavam perigosamente, como uma japonesa que fraturou o quadril em 2015.
O túnel não tem mais nenhuma proteção oficial do Estado, segundo uma reportagem do site "Radio Free Europe". Em 2013, a fábrica resolveu cortar um monte de árvores que estariam atrapalhando o tráfego. Houve protestos intensos, e a Odek, percebendo que a medida poderia gerar mais dor de cabeça para seus diretores do que alívio para os maquinistas, resolveu não mexer mais naquilo que se transformou em uma atração com vida própria (literalmente).
A guerra de Putin
Orziv fica no oeste, o pedaço historicamente mais ligado à Europa Central e Ocidental do que à Rússia. Está longe das áreas invadidas pelos russos, mas não tanto da guerra: em março e em junho do ano passado, a província onde a cidade fica, Rivne, foi bombardeada. Mais de 20 pessoas morreram.
A guerra afetou a economia global, especialmente nos setores estratégicos em que Rússia e Ucrânia se destacam, como a produção de trigo e gás natural. Mas indústrias sem a mesma carga geopolítica também sofreram. É o caso da madeira.
Metade das importações de madeira da União Europeia vem da Rússia, de Belarus (seu aliado que também sofre sanções internacionais) e da Ucrânia. Juntos, os três países detêm quase um quarto do mercado mundial.
A Rússia, afinal de contas, tem a maior área florestal do mundo, com 8,1 milhões de quilômetros quadrados - a Amazônia pode ser a maior floresta tropical do mundo, mas é por isso mesmo que o "tropical" deve ser mencionado: a floresta boreal que ocupa a maior parte da Escandinávia e da Rússia (onde ela é conhecida como taiga) é o maior bioma da Terra.
A guerra bagunçou o mercado de madeira no continente. Em 2022, firmas de construção da Europa Ocidental relataram que os preços de carvalho sólido e de compensado de bétula dobraram em alguns lugares. As condições das cadeias de suprimento viraram uma grande preocupação. O diretor de uma fabricante de móveis inglesa falou que a madeira necessária para alguns projetos ficou mais cara do que a empresa cobraria pelo projeto em si.
Em alguns lugares, madeira virou ouro. Logo após a invasão, a União Europeia e o Reino Unido baniram a importação de madeira russa como parte do pacote de sanções. Se o conflito se estender por muito tempo, vai saber as consequências. O túnel do amor pode acabar preenchido. Não por amor, mas pelo vazio provocado por um colapso econômico, em que trens deixam de circular e turistas param de viajar. Pelo menos seria um vazio verde.
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