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Charme nas alturas: 'cidade das pontes' atraiu impérios e 'ganhou' Nobel

Viaduto Mellah-Slimane em Constantina, na Argélia - Iacob MADACI/Getty Images/iStockphoto
Viaduto Mellah-Slimane em Constantina, na Argélia Imagem: Iacob MADACI/Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

04/06/2023 04h00

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36º22'N, 36º56'L
Ponte Sidi M'Cid
Constantina, Constantina, Argélia

Os romanos a usaram de base na guerra contra o Reino da Numídia, no século 2º. Em 1942, os Aliados também a transformaram em base militar, durante a campanha do Norte da África, na Segunda Guerra Mundial. Em seus mais de 2 mil anos, Constantina foi cobiçada por impérios e inspirou grandes feitos da engenharia e da medicina.

Hoje, a "cidade das pontes", como é conhecida, é uma das maiores aglomerações urbanas da Argélia. Cortada por cânions e vales, ela mantém o charme que mistura ares berberes, otomanos e franceses nas alturas. Este ano, voltou a causar atritos regionais, mesmo que indiretamente, em uma rixa geopolítica que passa despercebida na maior parte do tempo pela imprensa.

Que lugar é esse?

Pintura do século 18 mostra Constantina - Domínio Público - Domínio Público
Pintura do século 18 mostra Constantina
Imagem: Domínio Público

Ela foi fundada pelos fenícios e batizada de Cirta pela Numídia, um reino que se espalhou pelo norte africano e acabou integrando a zona de influência de Roma. Em 311 d.C., Cirta foi destruída em uma guerra civil. Reconstruída dois anos depois, ganhou um nome em homenagem ao vencedor do conflito, Constantino, famoso por ter sido o primeiro imperador romano a se converter ao cristianismo.

Nos séculos seguintes, Constantina foi capturada pelos vândalos (povo germânico que conquistou partes da Península Ibérica e do Norte da África com o colapso romano), os bizantinos e os árabes. Entre os séculos 16 e 19, foi possessão dos turcos-otomanos, que deram à cidade muitas das feições arquitetônicas visíveis até hoje.

Prisão em Constantina, em 1837 - Domínio Público - Domínio Público
Prisão em Constantina, em 1837
Imagem: Domínio Público

A partir dos anos 1830, a região e toda a vasta área da Argélia, o maior país africano (pouco menor que a Argentina), foi conquistada pela França, dando início a uma das colonizações mais encarniçadas dos últimos 200 anos. Mas os franceses não tomaram a cidade facilmente. Além dos platôs e ravinas, Constantina fica 80 km para dentro do território, em direção à imensidão desértica, o que faz dela um alvo difícil. Em 1836, os argelinos rechaçaram uma ofensiva francesa, massacrada com franco-atiradores e ataques noturnos.

No ano seguinte, a França revidou com bombardeios e se infiltrou na cidade até tomá-la de vez, deixando um saldo de 20 mil civis mortos nas ruas. Até se apoderar de toda a Argélia, em 1847, a guerra de conquista matou 775 mil pessoas.

Prêmio Nobel

Ponte de Sidi Rached - Iacob MADACI/Getty Images/iStockphoto - Iacob MADACI/Getty Images/iStockphoto
Ponte de Sidi Rached
Imagem: Iacob MADACI/Getty Images/iStockphoto

Em 1880, trabalhando no Hospital Militar de Constantina, o médico francês Charles Laveran descobriu que o que causa a malária é o parasita unicelular plasmodium. Isso comprovou uma teoria até então contestada por parte da comunidade científica, a que defendia que o transmissor da malária é um mosquito, e que ela não é causada por odores fétidos no ar, os miasmas, como se acreditou por séculos.

A descoberta permitiu um combate muito mais efetivo contra a malária, tida como a doença que mais matou gente na história. Pelo feito, Laveran recebeu o Nobel de Medicina em 1907.

Argélia X França

Constantina, na Argélia: monumento foi construído em memória de 800 jovens mortos em guerra - Abdenour A/Getty Images/iStockphoto - Abdenour A/Getty Images/iStockphoto
Constantina, na Argélia: monumento foi construído em memória de 800 jovens mortos em guerra
Imagem: Abdenour A/Getty Images/iStockphoto

A independência da Argélia veio somente em 1962, após uma brutal guerra que durou oito anos e ceifou 525 mil vidas. O conflito mergulhou a França em uma crise política que por pouco não a transformou em uma ditadura. Quanto à Argélia, nas décadas seguintes ela seguiu a triste cartilha de golpe militar, guerra civil, governos autoritários etc.

Hoje, ela está longe de ser um Estado falido, ainda mais se compararmos a vizinhos mais turbulentos, como Líbia e Mali. Inclusive, na edição mais recente do Ranking de Fragilidade dos Estados, da organização americana Fund for Peace, a Argélia teve uma nota pouco superior à do Brasil.

Com ruínas e cidades históricas de um punhado de impérios do passado, os mistérios do Saara e uma vasta costa mediterrânea, a Argélia tem sido apontada como a próxima grande fronteira turística da África. Constantina, sem dúvida, é um dos destaques do país.

Cidade das Pontes

Viaduto Mellah-Slimane em Constantina, Argélia  - Iacob MADACI/Getty Images/iStockphoto - Iacob MADACI/Getty Images/iStockphoto
Viaduto Mellah-Slimane em Constantina, Argélia
Imagem: Iacob MADACI/Getty Images/iStockphoto

Por causa de sua geografia singular, Constantina se espraiou pelos platôs com suas pontes. No fim do século 19, o grande contista francês Guy de Maupassant, um dos viajantes que escreveu sobre a cidade, anotou:

Oito pontes já cruzaram este precipício. Seis delas estão em ruínas hoje. Apenas uma de origem romana ainda nos dá uma ideia do que foi. O [rio] Rumel, de um lugar para outro, desaparece sob os arcos colossais que ele mesmo cavou. Em um deles foi construída a ponte. O arco natural por onde passa o rio tem quarenta e um metros de altura e as fundações da construção romana estão, portanto, cinquenta e nove metros acima da água, e a própria ponte tinha dois andares, duas fileiras de arcos sobrepostos ao arco gigante da natureza. Hoje, uma ponte de ferro, de arco único, dá entrada a Constantina."

Atualmente, existem pelo menos oito pontes importantes. A mais famosa delas é de 1912. Quando ficou pronta, a Sidi M'Cid se tornou a ponte mais alta do mundo, com 175 metros de altura. O título durou dez anos, quando a cidade suíça de Nioc ganhou uma ponte suspensa de 190 metros.

A Sidi M'Cid oferece uma baita vista do vale e da cidade, mas ela por si só é um atrativo, com seus cabos e uma réplica do Arco de Trajano, monumento romano erguido em Timgad, cidade nas montanhas Aurès fundada justamente por Trajano, o imperador romano, por volta de 100 d.C.

Treta com vizinho

Ponte sobre o rio Rhummel em Constantina - Leonid Andronov/Getty Images/iStockphoto - Leonid Andronov/Getty Images/iStockphoto
Ponte sobre o rio Rhummel em Constantina
Imagem: Leonid Andronov/Getty Images/iStockphoto

No começo do ano, a Argélia sediou o Campeonato das Nações Africanas (Chan), uma disputa entre seleções de futebol masculino apenas com jogadores em atividade no continente. Ou seja, é tipo a mais famosa Copa Africana, porém sem os muitos atletas que jogam nas ligas da Europa e de outros continentes.

O campeonato já havia sido adiado porque nas datas originalmente marcadas, em julho do ano passado, a situação da pandemia no país não permitia um evento de tal magnitude. Em janeiro, um novo contratempo: às vésperas do início, uma das seleções anunciou que não participaria. Justamente a sensação da Copa do Mundo encerrada havia apenas um mês.
Marrocos, primeira seleção africana a chegar à semifinal de uma Copa, estava fora. E o motivo era político.

Como a federação marroquina não teve a confirmação de que o voo levando a delegação saindo de Rabat teria autorização para pousar em Constantina, ela achou por bem cancelar a ida de uma vez. Não conseguiu uma exceção para voar, então pulou fora.

Exceção porque desde 2021 o espaço aéreo da Argélia está fechado para aviões civis e militares do Marrocos. Os dois países romperam relações diplomáticas por causa das posições divergentes em relação ao Saara Ocidental (o que rende assunto para um novo post aqui no Terra à Vista). Sem a participação de Marrocos, a Argélia chegou à final, mas acabou perdendo para Senegal.

Em março, o presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, declarou que as relações com o vizinho atingiram um ponto de não-retorno. Mesmo na cidade habituada há séculos a construir pontes, a tendência humana a erguer muros às vezes prevalece.

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