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'Sopa é janta'? Na Suíça, prato unificou o país e acabou até com guerra

Família alemã consome o milchsuppe, sopa de leite, em retrato de 1935 - ullstein bild Dtl./ullstein bild via Getty Images
Família alemã consome o milchsuppe, sopa de leite, em retrato de 1935 Imagem: ullstein bild Dtl./ullstein bild via Getty Images

Colunista do UOL

02/07/2023 04h00

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47º13'N, 8º32'L
Milchsuppenstein
Hausen am Albis, Zurique, Suíça

A fama de neutralidade dos suíços tem longa data. Por cerca de 200 anos, não foi só fama, mas política de Estado. O país só foi entrar na ONU em 2002. Genebra é a sede da OMS, da Cruz Vermelha, da OMC e de uma penca de outros órgãos de colaboração internacionais.

Mas isso não quer dizer que a Suíça sempre tenha sido um bastião do diálogo, uma fortaleza da diplomacia, o paraíso dos ponderados. As bases do país surgiram das diferenças, da revolta e da guerra.

Afinal de contas, estamos no coração da Europa. E, ao longo da história, não teve outro continente que propiciou mais momentos de selvageria e brutalidade do que esse.

O embrião da Suíça moderna surgiu no século 14, quando uma união de regiões (ou cantões, como ali são chamadas) derrotou os austríacos e formou uma confederação. Em 1499, essa Antiga Confederação Helvética conquistou um belo grau de autonomia, mas ainda dentro dos limites do Sacro Império Romano-Germânico.

Em 1519, um vigário da Catedral de Zurique chamado Ulrich Zwinglio se revoltou contra a Igreja Católica e introduziu a Reforma Protestante no país. Dez anos depois, a Suíça estava dividida entre cantões dominados por católicos e outros por protestantes.

Albis, na Suíça - Instagram/Reprodução - Instagram/Reprodução
Albis, na Suíça
Imagem: Instagram/Reprodução

No dia 10 de junho daquele 1529, forças inimigas se encontraram em Kappel am Albis. Estavam prontas para a batalha, mas o magistrado local tentou mediar um acordo de paz.

Os batalhões estavam cansados de tantos anos de conflito e aproveitaram a pausa para relaxar. Eventualmente, estavam confraternizando com os vizinhos transformados em inimigos.

Conta a lenda que alguém fez brotar um enorme caldeirão no centro do que, por pouco, não foi o campo de batalha. Católicos cederam o leite. Protestantes, o pão. Da mistura, nasceu a milchsuppe, ou, literalmente, sopa de leite, uma receita tradicional suíça.

O prato aqueceu corações e estômagos e facilitou que as partes concordassem com uma trégua. O episódio se tornou emblemático na formação da identidade nacional. Em 1869, o famoso pintor suíço Albert Anker eternizou a cena, que hoje está no Kunsthaus, principal museu de arte da Suíça, em Zurique. Quem vê esta cena não quer guerra com ninguém:

milchsuppe, ou, literalmente, sopa de leite, uma receita tradicional suíça - Domínio público - Domínio público
Imagem: Domínio público

O lugar do encontro hoje se chama Milchsuppestein e tem um marco lembrando o episódio. Fica no alto de um morro, com vista para a cidade de Zug e o lago de mesmo nome.

O marco Milchsuppestein - Instagram/Reprodução - Instagram/Reprodução
O marco Milchsuppestein
Imagem: Instagram/Reprodução

Mas isso não significa que a sopa trouxe paz imediata à Suíça. "Todos os países envernizam um pouco sua história", disse à BBC Susanne Wey-Korthals, pastora aposentada da Abadia de Kappel e historiadora. "Nós fizemos o mesmo, transformamos a sopa em ícone nacional."

Kappeler Milchsuppenstein - Instagram/Reprodução - Instagram/Reprodução
Kappeler Milchsuppenstein
Imagem: Instagram/Reprodução

Em 1536, João Calvino chegou a Genebra e a cidade adotou oficialmente o protestantismo. Com o tempo, ela viraria, segundo alguns pesquisadores, um Estado teocrático.

A trégua de 1519 eram sopas passadas. Zurique impôs um embargo aos cantões católicos, e a violência voltou a imperar. Mas o mito prosperou.

Em 2006, em um evento celebrado pela restituição de uma série de artefatos históricos que foram saqueados por forças calvinistas da Abadia de São Galo, em St. Gallen, durante uma guerra em 1712, o prato servido foi a sopa de leite. Em 2017, em uma celebração ecumênica para marcar os 500 anos da Reforma e reafirmar a união cristã da Suíça, a milchsuppe foi o destaque à mesa.

O prato é um gesto comum de acordo político. Inclusive, virou peça de propaganda nacionalista. A mesma onda atual de grupos e partidos da direita ou extrema-direita, que sequestram símbolos nacionais para tentar transformá-los em ícones de um país idealizado e saudosista de algo que nunca foi, também pegou a sopa.

O partido SVP, da direita populista, usa a sopa para aludir à "Suíça que eles defendem", disse a pastora. (A milchsuppe virou uma espécie de camisa da seleção?)

Por aqui, felizmente, sopa é motivo de discussão apenas para a produção de memes. Em tempo: para mim, sopa é jantar, sim. E, assim como sorvete, cai bem em qualquer época do ano.

Ps.: Quer fazer em casa? O site "Helvetic Kitchen" traz uma receita e mais curiosidades do prato (em inglês).



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