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Portal para o inferno: como a 'caverna dos gatos' deu origem ao Halloween

53º47'N, 8º,18'O
Caverna Oweynagat
Rathcroghan, Roscommon, Irlanda

Gostemos ou não, o Halloween virou uma festa global, ou quase isso. É decoração de shopping, festinha em escola e iluminação diferenciada em casas de condomínios diferenciados. Foi-se o tempo em que o 31 de Outubro só era lembrado nos cursinhos de inglês. Da Alemanha à Indonésia, do Brasil ao Japão, da França à Austrália, o Dia das Bruxas atrai mais adeptos ano a ano.

Mais da metade dos britânicos gastaram em algum produto ou serviço relacionado à festa este ano. O faturamento do Halloween deverá passar de 1 bilhão de libras pela primeira vez em 2023. Em 2016, foram 310 milhões. Desde os anos 1990, o comércio francês vem explorando a data, a fim de aproveitar o feriado nacional de 1º de novembro (Dia de Todos os Santos) e funcionar como um esquenta para o Natal. Na Coreia do Sul, a data é tão popular que ano passado teve até tragédia: 159 pessoas morreram pisoteadas nas celebrações de Halloween, em que mais de 100 mil jovens festejavam nas ruas de Seul.

Nem todo mundo é fã, bem longe disso. Em 2017, uma pesquisa mostrou que 48% dos alemães consideram a festa uma importação americana que deturpa a cultura do país. No Reino Unido, o Halloween vem ofuscando a Noite de Guy Fawkes, celebrada em 5 de novembro e marcada pela grande queima de fogos de artifício para lembrar a conspiração fracassada que tentou explodir o Parlamento britânico em 1605. Fora o nosso Dia do Saci, criado no início do século como um contrapeso ao americanizado Halloween.

Pessoalmente, sou a favor de uma antropofagia nisso tudo. Monteiro Lobato popularizou um saci-pererê chifrudo que chupava o sangue dos cavalos. Uma versão mais antiga da mula-sem-cabeça tinha cascos afiados. Outras mostram uma cuca sinistra e amedrontadora, um curupira sem ânus, um negrinho do pastoreio torturado em um formigueiro… Material não falta para nosso folclore invadir de vez a festa de vampiros e abóboras, e sem precisar de ufanismo chato.

Mas acontece que essa birra antiamericana não tem tanta razão de ser. Sim, o formato que se disseminou da festa nasceu nos Estados Unidos, mas ele é só um apanhado de uma celebração muito velha, multicultural, que surgiu do outro lado do Atlântico e acumulou influências ao longo de milênios.

As origens

Rathcroghan é um conjunto de 240 sítios arqueológicos na zona rural do condado de Roscommon, na Irlanda. Com pedras monolíticas, túmulos, resquícios de terraplenagens lineares e um santuário da Idade do Ferro, essas ruínas, algumas de 5,5 mil anos atrás, contam a história do centro religioso que funcionava ali, quando essas terras eram o reino celta de Connaught.

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Quase tudo está enterrado sob os belos e afamados campos verdes irlandeses. Mas há uma pequena abertura na terra, chamada Oweynagat, que os povos locais tratavam como uma porta para o submundo. O nome quer dizer algo como "caverna dos gatos".

Connaught não chegou a ter centros urbanos ou algo que se assemelhasse a uma cidade da Antiguidade. Rathcroghan tinha a função de assentamento real para festividades que cultuavam a natureza. Era o caso do Samhain (pronuncia-se algo como "sáuim").

O Samhain, mais de 2 mil anos atrás, encerrava um ano e começava outro. O povo se reunia em Rathcroghan e seu templo que se elevava na colina. Fazia rituais e oferendas às criaturas do submundo que, naquela noite especial, apareciam no plano terreno.

O mundo dos vivos e dos mortos se misturava. Fantasmas destruíam a vegetação e faziam uma bagunça danada, mas a presença deles facilitava o ofício dos sacerdotes conhecidos como druidas de fazer previsões. Os celtas acendiam fogueiras e se disfarçavam de monstros para não virarem alvo das criaturas e acabarem levados para dentro da caverna.

O Samhain simbolizava a preparação para o inverno. Se o nosso calendário gregoriano existisse naquela época, a folhinha estaria marcando 31 de outubro.

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A evolução da festa

Vista do castelo de Lough Key, no rio Shannon
Vista do castelo de Lough Key, no rio Shannon Imagem: Getty Images/iStockphoto

Só que não tinha calendário gregoriano, porque ele foi promulgado por um papa (Gregório 13), e naquela época não existia papa nem Igreja nem cristianismo. O que existia era um enorme império vindo do sul para conquistar aquelas ilhas.

Os romanos não conquistaram Hibérnia (como eles chamavam a Irlanda), mas sim a Britânia, cujos celtas tinham costumes semelhantes aos dos vizinhos. Nessa dominação, que começou em 43 d.C., as festividades ganharam novos tons. O Samhain assimilou elementos da Feralia, em que os romanos honravam os mortos e faziam oferendas em seus túmulos.

A Feralia acontecia em fevereiro, considerado o mês mais maldito do ano pelos romanos, em que os espíritos vinham do além e precisavam ser acalmados. Já a Pomona era dedicada à deusa de mesmo nome, nos primeiros dias de novembro. Protetora dos jardins e pomares e simbolizada por uma maçã, Pomona era ligada também ao amor e à fertilidade, o que acabou dando uma aura de mágica e encantamento ao Samhain, segundo Roseanne Montillo no livro "Halloween and Commemorations of the Dead" ("Halloween e comemorações dos mortos", inédito no Brasil). "Uma tradição consistia em enterrar maçãs no solo para alimentar as almas que transitavam entre os dois mundos", explica a autora.

Ao longo de 400 anos, os costumes dos celtas ganharam toques romanos. Mais tarde, essa influência latina sobre as Ilhas Britânicas passou a ser representada pela Igreja. No século 8º, o papa Gregório 3º definiu que as festas que aconteciam pelas terras cristãs em honra de todos os seus santos e mártires fosse concentrada em uma data, 1º de novembro. No século 11, o abade Odilo, que liderava uma poderosa instituição católica medieval, a Abadia de Cluny, na França, disseminou a tradição de reservar o 2 de novembro para honrar os mortos.

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Nas distantes ilhas celtas, onde o cristianismo ainda não estava firmado como na Itália ou na França, isso se mostrou útil para a Igreja, porque facilitou a assimilação das festividades ao realizá-las na mesma época do antigo samhain. Basicamente, a noite em que o muro entre o mundo dos vivos e mortos cai se misturou ao dia dedicado aos mortos canonizados e àquele que honra todos os cristãos mortos.

Mais tempo se passou, a língua inglesa se desenvolveu. O Dia de Todos os Santos era chamado de "All Saints' Day" ou "All Hallows' Day". A véspera, portanto, era "All Hallows' Eve". Daí veio o nome "Halloween".

No século 19, a grande leva de imigrantes irlandeses que chegou aos Estados Unidos levou na bagagem a tradição ancestral. Máscaras e fantasias que antes ludibriavam espíritos agora serviam para brincar na rua. A comida deixada na porta de casa para afastar fantasmas virou uma maneira de interagir com a vizinhança.

O cinema, a televisão e as redes sociais difundiram a festa por países que não têm nada de cultura celta, não integraram o Império Romano, não têm população majoritariamente católica. Uma festa que ganhou contornos atuais nos Estados Unidos, mas que nasceu muito antes e ganhou uma porção de elementos ao longo do tempo.

De volta às origens

Rathcroghan podia pegar carona nisso e se transformar em um parque temático para fãs do tema. Provavelmente teria mais turistas — hoje é um dos destinos menos conhecidos da Irlanda, segundo a "National Geographic". Mas os administradores do local, um dos assentamentos não escavados da Europa, preferem apostar no turismo sustentável em vez de numa "Hallowdisney".

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A existência de Rathcroghan é conhecida dos irlandeses há séculos, mas foi só nos anos 1990 que cientistas começaram a descobrir, por meio de sensores e tecnologias do tipo, a complexidade arqueológica que estava debaixo de seus pés.

Tudo é bastante sutil, digamos assim. Não espere encontrar um Stonehenge da vida. A caverninha de Oweynagat é mal sinalizada, escondida entre árvores no fim de uma estrada vicinal em uma fazenda, a cerca de 1 quilômetro do morro de Rathcroghan.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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