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Reportagem

A controversa história da múmia 'ET' achada em cidade-fantasma no Chile

20º22'S, 69º51'O
Cidade fantasma de La Noria
Tamarugal, Tarapacá, Chile

Em 2003, um sujeito chamado Oscar Muñoz teria feito uma descoberta insólita no norte do Deserto do Atacama. No cemitério de uma igreja em uma vila abandonada, ele encontrou o esqueleto do que, aparentemente, era um extraterrestre.

O cadáver, mumificado naturalmente, era tão diferente de tudo, e tão "parecido" com a imagem que a cultura pop criou para os alienígenas, que essa era a única notícia a respeito. Os muitos questionamentos éticos de alguém violar uma sepultura e vender restos mortais passaram batido. O fato de o comprador ser um espanhol, 185 anos após a independência chilena, pode dar um tom de ironia histórica revoltante à saga.

Batizada de Ata, a múmia tem o tamanho de um feto humano. Mas os ossos são muito duros, e bem desenvolvidos como se fossem de uma criança de uns 6 anos. A cabeça cônica e as grandes cavidades oculares faziam de Ata, e seus apenas 15 centímetros de altura, uma grande concorrente a ser primeira criatura clinicamente comprovada extraterrestre de que se tem notícia. Bem, pelo menos para os que querem acreditar.

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Imagem: Divulgação/'Sirius'

Muñoz vendeu a múmia a um colecionador de Barcelona chamado Ramón Navia-Osorio. Em 2012, Navia-Osorio permitiu que o ufólogo Steven Greer investigasse o caso. Greer é fundador do "Disclosure Project", cujo foco é (ou era, já que o site está fora do ar) revelar fatos sobre inteligência extraterrestre.

Greer, que também é médico, analisou o esqueleto com tomografia computadorizada para a realização de um documentário. Isso chamou a atenção de Garry Nolan, imunologista da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Greer enviou amostras da medula óssea de Ata ao cientista.

O time de Nolan concluiu que Ata era um ser humano. Era uma terráquea, nada de ET.

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Imagem: Divulgação/Sirius
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Mas o que explicava sua aparência?

A equipe se juntou ao biólogo computacional Atul Butte, da Universidade da Califórnia, para analisar o genoma de Ata. Em 2018, eles publicaram um estudo que mostra que há mutações em sete genes ligados ao crescimento, o que teria provocado as anormalidades no esqueleto, como o rápido desenvolvimento e o tamanhinho de Ata.

As conclusões de Nolan e Butte serviriam para encerrar a discussão de uma vez. Pelo menos foi assim que a imprensa noticiou o feito. Mas, meses depois, um novo estudo, feito por um time internacional de pesquisadores, liderado pela bioarqueóloga Siân Halcrow, da Universidade de Otago, na Nova Zelândia, questionou os resultados.

Os autores, especialistas em desenvolvimento ósseo, não notaram nenhuma evidência das anomalias esqueletais citadas. "As mutações genéticas identificadas são possivelmente uma coincidência, e nenhuma delas é conhecida por estar associada a displasias esqueléticas que afetariam o fenótipo nesta idade jovem", concluíram.

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Imagem: Divulgação/'Sirius'

Halcrow ainda questionou as bases éticas e legais do estudo americano. Fez coro a o que cientistas chilenos já vinham fazendo. Eles criticaram todo o processo, alegando que Ata foi retirada do país ilegalmente e que as pesquisas foram antiéticas.

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Ata provavelmente morreu logo após o parto ou foi natimorta, em algum momento entre os anos 1950 e 1970. O fato de ter sido descoberta, cerca de 40 anos mais tarde, em um lugar completamente deserto deixa toda a história misteriosa.

Seus pais, provavelmente, estavam de passagem e desejaram dar a ela um enterro digno no pequeno cemitério de uma igreja, em um vilarejo que, como tantos outros naquela região, chegou a viver um boom econômico, mas acabou atropelado pelos rumos da economia e do progresso.

Que lugar é esse?

O salitre-do-chile, ou nitrato de sódio, já foi chamado de ouro branco. Assim como o nitrato de potássio, que chamamos apenas de salitre, ele tem uma ampla gama de aplicações industriais, de fertilizantes a explosivos.

No fim do século 19, as regiões de Antofagasta e Tarapacá, no norte do Chile, atraíam trabalhadores de diversos países a fim de explorar as grandes reservas de nitrato, que alimentavam fábricas na Europa e nos Estados Unidos. Era tanto dinheiro envolvido que houve até guerra.

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A Guerra do Pacífico (1879-1884), não à toa, também foi chamada de Guerra do Salitre. O nitrato foi o motivo principal do conflito, em que o Chile derrotou os vizinhos Peru e Bolívia e tomou deles os territórios ricos em minérios. Foi assim que a Bolívia perdeu Antofagasta (e o acesso ao mar). Já o Peru ficou sem Tarapacá, em uma guerra que tem feridas abertas até hoje.

Até o começo do século 20, as cidades de Humberstone e Santa Laura cresciam de maneira próspera. Centenas de prédios brotavam no deserto, vilas menores surgiam nos arredores, com residências para sul-americanos, europeus e asiáticos. Por um século, os depósitos de nitrogênio do Atacama supriam, sozinhos, a demanda mundial. Toda uma cultura dinâmica se desenvolvia até que, na Alemanha, dois cientistas e uma nova guerra, muito maior que a do Pacífico, sacramentaram o destino das cidades do salitre.

O químico Fritz Haber descobriu como fixar o nitrogênio atmosférico para obter amônia, que podia substituir o salitre em aplicações industriais. Mais tarde, Carl Bosch conseguiu aplicar o método em escala industrial, e assim a Alemanha não dependeria mais da matéria-prima chilena. Isso veio a calhar quando estourou a Primeira Guerra Mundial, em 1914, e os inimigos britânicos bloquearam o acesso dos alemães ao salitre.

Os ingleses estavam muito envolvidos com os negócios no Atacama. Não é coincidência que uma das cidades do salitre se chamava Humberstone, em homenagem ao engenheiro químico britânico que explorava o nitrato de Tarapacá quando a região ainda era peruana, nos anos 1870.

Após a guerra, o processo industrial, que ficou conhecido como método Haber-Bosch, se disseminou. Nos anos 1940, a demanda pelo salitre chileno era uma fração da de outros tempos, e as cidades começaram a ser abandonadas.

O deserto e a múmia

A bióloga chilena Cristina Dorador, em um artigo em que critica a forma como Ata foi tratada desde sua descoberta, lembra que a vida era tão dura nesses lugares que o Chile já teve a maior taxa de mortalidade infantil do mundo. Isso explica a quantidade de pequenos cemitérios espalhados pela região. As características do Atacama, considerado o deserto mais seco do mundo, favorecem a mumificação dos corpos, o que atrai ladrões de tumbas, conhecidos como "huaqueros".

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O Atacama continua tendo grande importância na economia chilena, mas na exploração de outras matérias-primas, com outras minas. O país é o maior produtor mundial de cobre, por exemplo.

Vista aérea da cidade de Iquique, no norte do Chile
Vista aérea da cidade de Iquique, no norte do Chile Imagem: Getty Images/iStockphoto

Mas os tempos áureos do salitre ficaram para trás. Foi em uma dessas vilas fantasmas, chamada La Noria, que Ata foi enterrada e, depois, descoberta, vendida, analisada cientificamente e transformada em objeto de especulação. Mas bota especulação: um documentário chegou a afirmar que a múmia tem mil anos e é um registro óbvio do contato entre civilizações antigas e alienígenas.

La Noria fica pertinho de Humberstone, que, assim como Santa Laura, é patrimônio da humanidade desde 2005. Humberstone fica a cerca de 40 minutos de carro de Iquique, cidade onde o deserto encontra o oceano, com um centro histórico que remete à bonança dos tempos do salitre.

A polêmica sobre a procedência de Ata pode ter sido resolvida, apesar de Nolan, o cientista de Stanford, ter declarado recentemente que tem certeza de que alienígenas vivem entre nós.

Mas a polêmica maior resiste. Como Dorador resumiu: "Qual foi o destino da garota de La Noria? Uma gaveta escura em algum lugar na Europa".

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Este é o 250º texto do "Terra à Vista". Obrigado pela audiência e pelos comentários (quase sempre) bem-educados e elucidativos em todos esses anos. Até semana que vem!

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